Sobre os prados de Adélia andamos nos mais lindos poemas.
Mineira de Divinópolis, é minha poeta favorita, e há tempos gostaria de trazer seus melhores poemas aqui no Blog.
Selecionei à dedo os poemas abaixo para quem interessar possa – só peço que me perdoe pela falta de métrica que não foi reproduzida.
Como diria o prefácio do livro…
“A poesia de Adélia perpassa pelo mais comum da vida cotidiana , e é na santificação dos menores atos que ela nos revela uma mulher em pleno transbordamento de paixão”.
Ouça estas frases em meu Podcast:
COM LICENÇA POÉTICA
Quando nasci um anjo esbelto , desses que tocam trombeta , anunciou : vai carregar bandeira .
Cargo muito pesado pra mulher , esta espécie ainda envergonhada . Aceito os subterfúgios que me cabem , sem precisar mentir .
Não sou tão feia que não possa casar , acho o Rio de Janeiro uma beleza e ora sim , ora não , creio em parto sem dor . Mas o que sinto escrevo . Cumpro a sina .
Inauguro linhagens , fundo reinos – dor não é amargura . Minha tristeza não tem pedigree , já a minha vontade de alegria , sua raiz vai ao meu mil avô .
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem . Mulher é desdobrável . Eu sou .
ORFANDADE
Meu Deus , me dá cinco anos .
Me dá um pé de fedegoso com formiga preta , me dá um Natal e sua véspera , o ressonar das pessoas no quartinho .
Me dá a negrinha Fia pra eu brincar , me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe .
Me dá minha mãe , alegria sã e medo remediável , me dá a mão , me cura de ser grande , ó meu Deus , meu pai , meu pai .
*Ouça meu Podcast “Livros da Minha Vida” no Spotify: https://open.spotify.com/show/5E0SzhjrATqzSa4fc7AXTG?si=e26f4e33d1b44ab1
POEMA ESQUISITO
Dói – me a cabeça aos trinta e nove anos . Não é hábito . É rarissimamente que ela dói . Ninguém tem culpa . Meu pai , minha mãe descansaram seus fardos , não existe mais o modo de eles terem seus olhos sobre mim . Mãe , ô mãe , ô pai , meu pai . Onde estão escondidos ?
É dentro de mim que eles estão . Não fiz mausoléu pra eles , pus os dois no chão . Nasceu lá , porque quis , um pé de saudade roxa , que abunda nos cemitérios . Quem plantou foi o vento , a água da chuva . Quem vai matar é o sol . Passou finados não fui lá , aniversário também não .
Pra quê , se pra chorar qualquer lugar me cabe ? É de tanto lembrá – los que eu não vou . Ôôôô pai Ôôôô mãe Dentro de mim eles respondem tenazes e duros , porque o zelo do espírito é sem meiguices : Ôôôôi fia .
EXAUSTO
Eu quero uma licença de dormir , perdão pra descansar horas a fio , sem ao menos sonhar a leve palha de um pequeno sonho .
Quero o que antes da vida foi o profundo sono das espécies , a graça de um estado . Semente . Muito mais que raízes .
CLAREIRA
Seria tão bom , como já foi , as comadres se visitarem nos domingos . Os compadres fiquem na sala , cordiosos , pitando e rapando a goela . Os meninos , farejando e mijando com os cachorros .
Houve esta vida ou inventei ? Eu gosto de metafísica , só pra depois pegar meu bastidor e bordar ponto de cruz , falar as falas certas : a de Lurdes casou , a das Dores se forma , a vaca fez , aconteceu , as santas missões vêm aí , vigiai e orai que a vida é breve .
Agora que o destino do mundo pende do meu palpite , quero um casal de compadres , molécula de sanidade , pra eu sobreviver .
IMPRESSIONISTA
Uma ocasião , meu pai pintou a casa toda de alaranjado brilhante .
Por muito tempo moramos numa casa , como ele mesmo dizia , constantemente amanhecendo .
BUCÓLICA NOSTÁLGICA
Ao entardecer no mato , a casa entre bananeiras , pés de manjericão e cravo – santo , aparece dourada .
Dentro dela , agachados , na porta da rua , sentados no fogão , ou aí mesmo , rápidos como se fossem ao Êxodo , comem feijão com arroz , taioba , ora – pro – nobis , muitas vezes abóbora .
Depois , café na canequinha e pito . O que um homem precisa pra falar , entre enxada e sono : Louvado seja Deus !
PARA COMER DEPOIS
Na minha cidade , nos domingos de tarde , as pessoas se põem na sombra com faca e laranjas .
Tomam a fresca e riem do rapaz de bicicleta , a campainha desatada , o aro enfeitado de laranjas : ‘ Eh bobagem ! ’
Daqui a muito progresso tecno – ilógico , quando for impossível detectar o domingo pelo sumo das laranjas no ar e bicicletas , em meu país de memória e sentimento , basta fechar os olhos : é domingo , é domingo , é domingo .
ATÁVICA
Minha mãe me dava o peito e eu escutava , o ouvido colado à fonte dos seus suspiros : ‘ Ó meu Deus , meu Jesus , misericórdia ’ .
Comia leite e culpa de estar alegre quando fico . Se ficasse na roça ia ser carpideira , puxadeira de terço , cantadeira , o que na vida é beleza sem esfuziamentos , as tristezas maravilhosas .
Mas eu vim pra cidade fazer versos tão tristes que dão gosto , meu Jesus misericórdia . Por prazer da tristeza eu vivo alegre .
EXPLICAÇÃO DE POESIA SEM NINGUÉM PEDIR
Um trem de ferro é uma coisa mecânica , mas atravessa a noite , a madrugada , o dia , atravessou minha vida , virou só sentimento .
UM HOMEM DOENTE FAZ A ORAÇÃO DA MANHÃ
Pelo sinal da Santa Cruz , chegue até Vós meu ventre dilatado e Vos comova , Senhor , meu mal sem cura . Inauguro o dia , eu que a meu crédito explico que passei em claro a treva da noite . Escutei – e é quando às vezes descanso – vozes de há mais de trinta anos . Vi no meio da noite nesgas claríssimas de sol .
Minha mãe falou , enxotei gatos lambendo o prato da minha infância . Livrai – me de lançar contra Vós a tristeza do meu corpo e seu apodrecimento cuidadoso . Mas desabafo dizendo : que irado amor Vós tendes .
Tem piedade de mim , tem piedade de mim pelo sinal da Vossa Cruz , que faço na testa , na boca , no coração . Da ponta dos pés à cabeça , de palma à palma da mão .
ENDECHA DAS TRÊS IRMÃS
As três irmãs conversavam em binário lentíssimo .
A mais nova disse : tenho um abafamento aqui , e pôs a mão no peito . A do meio disse : sei fazer umas rosquinhas . A mais velha disse : faço quarenta anos , já . A mais nova tem a moda de ir chorar no quintal . A do meio está grávida . A mais cruel se enterneceu por plantas . Nosso pai morreu , diz a primeira , nossa mãe morreu , diz a segunda , somos três órfãs , diz a terceira . Vou recolher a roupa no quintal , fala a primeira . Será que chove ? , fala a segunda . Já viram minhas sempre – vivas ? , falou a terceira , a de coração duro , e soluçou . Quando a chuva caiu ninguém ouviu os três choros dentro da casa fechada .
BENDITO
Louvado sejas Deus meu Senhor , porque o meu coração está cortado a lâmina , mas sorrio no espelho ao que , à revelia de tudo , se promete . Porque sou desgraçado como um homem tangido para a forca , mas me lembro de uma noite na roça , o luar nos legumes e um grilo , minha sombra na parede .
Louvado sejas , porque eu quero pecar contra o afinal sítio aprazível dos mortos , violar as tumbas com o arranhão das unhas , mas vejo Tua cabeça pendida e escuto o galo cantar três vezes em meu socorro . Louvado sejas , porque a vida é horrível , porque mais é o tempo que eu passo recolhendo os [ despojos , – velho ao fim da guerra com uma cabra – mas limpo os olhos e o muco do meu nariz , por um canteiro de grama .
Louvado sejas porque eu quero morrer mas tenho medo e insisto em esperar o prometido . Uma vez , quando eu era menino , abri a porta de noite , a horta estava branca de luar e acreditei sem nenhum sofrimento . Louvado sejas !
SÍTIO
Igreja é o melhor lugar . Lá o gado de Deus para pra beber água , rela um no outro os chifres e espevita seus cheiros que eu reconheço e gosto , a modo de um cachorro . É minha raça , estou em casa como no meu quarto .
Igreja é a casamata de nós . Tudo lá fica seguro e doce , tudo é ombro a ombro buscando a porta estreita . Lá as coisas dilacerantes sentam – se ao lado deste humaníssimo fato que é fazer flores de papel e nos admiramos como tudo é crível . Está cheia de sinais , palavra , cofre e chave , nave e teto aspergidos contra vento e loucura . Lá me guardo , lá espreito a lâmpada que me espreita , adoro o que me subjuga a nuca como a um boi .
Lá sou corajoso e canto com meu lábio rachado : glória no mais alto dos céus a Deus que de fato é espírito e não tem corpo , mas tem o olho no meio de um triângulo donde vê todas as coisas , até os pensamentos futuros . Lugar sagrado , eletricidade que eu passeio sem medo . Se eu pisar , o amor de Deus me mata .
OS LUGARES COMUNS
Quando o homem que ia casar comigo chegou a primeira vez na minha casa , eu estava saindo do banheiro , devastada de angelismo e carência . Mesmo assim , ele me olhou com olhos admirados e segurou minha mão mais que um tempo normal a pessoas acabando de se conhecer .
Nunca mencionou o fato . Até hoje me ama com amor de vagarezas , súbitos chegares . Quando eu sei que ele vem , eu fecho a porta para a grata surpresa . Vou abri – la como o fazem as noivas e as amantes . Seu nome é : Salvador do meu corpo .
CONFEITO
Quero comer bolo de noiva , puro açúcar , puro amor carnal disfarçado de coração e sininhos : um branco , outro cor – de – rosa , um branco , outro cor – de – rosa .
AMOR FEINHO
Eu quero amor feinho . Amor feinho não olha um pro outro . Uma vez encontrado é igual fé , não teologa mais . Duro de forte o amor feinho é magro , doido por sexo e filhos tem os quantos haja .
Tudo que não fala , faz . Planta beijo de três cores ao redor da casa e saudade roxa e branca , da comum e da dobrada . Amor feinho é bom porque não fica velho . Cuida do essencial ; o que brilha nos olhos é o que é : eu sou homem você é mulher . Amor feinho não tem ilusão , o que ele tem é esperança : eu quero amor feinho .
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CANÇÃO DE AMOR
Veio o câncer no fígado , veio o homem pulando da cama no chão e andando de gatinhas , gritando : ‘ me deixa , gente , me deixa ’ , tanta era sua dor sem remédio . Veio a morte e nesta hora H , a camisa sem botão . Eu supliquei : eu prego , gente , eu prego , mas , espera , deixa eu chorar primeiro .
Ah , disseram Marta e Maria , se estivésseis aqui , nosso irmão não teria morrido . Espera , disse Jesus , deixa eu chorar primeiro . Então se pode chorar ? Eu posso então ? Se me perguntassem agora da alegria da vida , eu só tinha a lembrança de uma flor miudinha . Pode não ser só isso , hoje estou muito triste , o que digo , desdigo . Mas a Palavra de Deus é a verdade . Por isso esta canção tem o nome que tem .
JANELA
Janela , palavra linda . Janela é o bater das asas da borboleta amarela . Abre pra fora as duas folhas de madeira à toa pintada , janela jeca , de azul . Eu pulo você pra dentro e pra fora , monto a cavalo em [ você , meu pé esbarra no chão .
Janela sobre o mundo aberta , por onde vi o casamento da Anita esperando neném , a mãe do Pedro Cisterna urinando na chuva , por onde vi meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai : minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis . Ô janela com tramela , brincadeira de ladrão , claraboia na minha alma , olho no meu coração .
VEROSSÍMIL
Antigamente , em maio , eu virava anjo .
A mãe me punha o vestido , as asas , me encalcava a coroa na cabeça e encomendava : ‘ canta alto , espevita as palavras bem ’ . Eu levantava voo rua acima .
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SOLAR
Minha mãe cozinhava exatamente : arroz , feijão – roxinho , molho de batatinhas . Mas cantava .
TEMPO
A mim que desde a infância venho vindo como se o meu destino fosse o exato destino de uma estrela apelam incríveis coisas: pintar as unhas, descobrir a nuca, piscar os olhos, beber. Tomo o nome de Deus num vão. Descobri que a seu tempo vão me chorar e esquecer.
Vinte anos mais vinte é o que tenho, mulher ocidental que se fosse homem amaria chamar-se Eliud Jonathan. Neste exato momento do dia vinte de julho de mil novecentos e setenta e seis, o céu é bruma, está frio, estou feia, acabo de receber um beijo pelo correio. Quarenta anos: não quero faca nem queijo.
REGIONAL
O sino da minha terra ainda bate às primeiras sextas-feiras, por devoção ao coração de Jesus. Em que outro lugar do mundo isto acontece? Em que outro brasil se escrevem cartas assim: o santo padre Pio XII deixou pra morrer logo hoje, último dia das apurações.
Guardamos os foguetes. Em respeito de sua santidade não soltamos. Nós vamos indo do mesmo jeito, não remamos, nem descemos da canoa. Esta semana foi a festa de São Francisco, fiz este canto imitado: louvado sejas, meu Senhor, pela flor da maria-preta, por cujo odor e doçura as formigas e abelhas endoidecem,
cuja forma humílima me atrai, me instiga o pensamento de que não preciso ser jovem nem bonita para atrair os homens e o que neles ferroa como nos zangões. Meu estômago enjoa. Há circunvoluções intestinas no país.
Queria que tudo estivesse bem. Queria ficar noiva hoje e ir sozinha com meu noivo assistir a Os cangaceiros no cinema. Queria que nossa fé fosse como está escrito: AQUELE QUE CRÊ VIVERÁ PARA SEMPRE. Isto é tão espantoso que me retiro para meditar. Espero que ao leres esta estejas gozando saúde, felicidade e paz junto aos teus.
FLUÊNCIA
Eu fiz um livro, mas oh, meu Deus, não perdi a poesia. Hoje depois da festa, quando me levantei para fazer café, uma densa neblina acinzentava os pastos, as casas, as pessoas com embrulho de pão.
O fio indesmanchável da vida tecia seu curso. Persistindo, a necessidade dos relógios, dos descongestionantes nasais. Meu livro sobre a mesa contraponteava exato com os pardais, os urinóis pela metade, o antigo e intenso desejar de um verso. O relógio bateu sem assustar os farelos sobre a mesa. Como antes, graças a Deus.
CASAMENTO
Há mulheres que dizem: Meu marido, se quiser pescar, pesque, mas que limpe os peixes. Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, de vez em quando os cotovelos se esbarram ele fala coisas como ‘este foi difícil’, ‘prateou no ar dando rabanadas’ e faz o gesto com a mão. O silêncio de quando nos vimos a primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo. Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir. Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva.
A MENINA E A FRUTA
Um dia, apanhando goiabas com a menina, ela abaixou o galho e disse pro ar – inconsciente de que me ensinava – ‘goiaba é uma fruta abençoada’. Seu movimento e rosto iluminados agitaram no ar poeira e Espírito: o Reino é dentro de nós, Deus nos habita. Não ha como escapar à fome da alegria!
A FILHA DA ANTIGA LEI
Deus não me dá sossego. É meu aguilhão. Morde meu calcanhar como serpente, faz-se verbo, carne, caco de vidro, pedra contra a qual sangra minha cabeça. Eu não tenho descanso neste amor. Eu não posso dormir sob a luz do seu olho que me fixa. Quero de novo o ventre de minha mãe, sua mão espalmada contra o umbigo estufado, me escondendo de Deus.
A PORTA ESTREITA
Deus, tem compaixão desta cidade e de mim que andei em suas ruas secretamente dizendo-me: sou o poeta deste povo. Que cansaço é viver! Um mosquito cantor rodeia minha cabeça: decide-te à santidade.
Me desgostam turistas. Só existe um lugar, a picada do sofrimento, e ela é perfeita. Não me doo mais por quem nunca viu o mar. Minha mãe perdoou meu pai, meu pai perdoou a mim: estes oceanos, sim.
MORTE MORREU
Quando o ano acinzenta-se em agosto e chove sobre árvores que mesmo antes das chuvas já reverdeceram, da mesma estação levantam-se nossos mortos queridos e os passarinhos que ainda vão nascer. “Ó morte, onde está tua vitória?” Eh tempo bom, diz meu pai.
A mãe acalma-se, tomam-se as providências sensatas. Todos pra janela, espiar as goteiras: “Chuva choveu, goteira pingou Pergunta o papudo se o papo molhou”. Pergunta a menina se a vida acabou.
DUAS HORAS DA TARDE NO BRASIL
Tanto quanto a vida amo este calor, esta claridade metafísica, este pequeno milagre: no ar tórrido os alecrins de seda não se crestam, espalmam como os jovens hebreus cantando na fornalha.
Quem sofre é meu coração, às duas horas da tarde quer rezar. Quem me chama é Deus? É Seu olho centrífugo o que me puxa? A vida tão curta e ainda não tenho estilo, palavras como astrolábio desviam-me de meus deveres, a forma de um nariz por semanas ocupa-me, seu jeito triste de fechar a boca. A quem amo enfim? Acaso fui seduzida pelo Filho do Homem e confundo você, mesquinho, e confundo você, vaidoso, com o que me quer com ele gemendo na sua cama de cruz? O europeu diz-se aturdido com o desperdício do sol.
Obrigada, respondo, com vergonha de carnaval, de batuques, de meus quadris excessivos. Jesus é búlgaro? Afegão? Holandês da colônia? Brasileiro não é. Estranhíssimo, sim, com seu corpo desnudo e perfurado, mendigando carinho, igual ao meu. Minha pátria, como as outras, tem folclore, cantigas cheias de melancolia.
Como posso aceitar que morreremos? E a alma do povo, a quem aproveitaria? Frigoríficos são horríveis mas devo poetizá-los para que nada escape à redenção: Frigorífico do Jiboia Carne fresca Preço joia. De novo quero rezar pra não ficar estrangeira meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes? Dizei-me quem sois Vós e quem sou eu, dizei-me quem sois Vós e quem sou eu.
CADERNO DE DESENHO
Quem verazmente se importa de que esteja tão abatida com as respostas do oráculo? Ele me ama? perguntei. Por quatro vezes respondeu silêncio, conflito, infortúnio e outra vez silêncio. Terá Vosso amor, ó Deus, tanta beleza, Vós que não tendes mãos, nem pés, nem aquele nariz perfeito por quem ardo até a última estrela? Se Jonathan me amasse…
Mas quem me ama é João e amo Jonathan desde os 12 anos, desde a única boa lembrança de irmã Guida que ensinava desenho, as formas escapando de conselhos, doutrinas, mais antigas que o pai, a mãe, mais antigas que o avô, reclamando de mim uma providência, para que perdurassem, ficassem ali comigo no caderno.
Eu desenhava mal entusiasmadamente, furando o papel com o lápis, querendo expulsar de mim, hoje sei – e queria mais não saber –, aquela beleza mortal. Eu lutava com o Anjo, com o Mensageiro que nunca mais me deixou. Que nome tem o que não morre? O nome de Deus é qualquer, pois, quando nada responde, ainda assim uma alegria poreja.
PRANTO PARA COMOVER JONATHAN
Os diamantes são indestrutíveis? Mais é meu amor. O mar é imenso? Meu amor é maior, mais belo sem ornamentos do que um campo de flores. Mais triste do que a morte, mais desesperançado do que a onda batendo no rochedo, mais tenaz que o rochedo. Ama e nem sabe mais o que ama.
ARTEFATO NIPÔNICO
A borboleta pousada
ou é Deus ou é nada.
PARÂMETRO
Deus é mais belo que eu. E não é jovem.
Isto, sim, é consolo.
FORMAS
De um único modo se pode dizer a alguém: ‘não esqueço você’. A corda do violoncelo fica vibrando sozinha sob um arco invisível e os pecados desaparecem como ratos flagrados.
Meu coração causa pasmo porque bate e tem sangue nele e vai parar um dia e vira um tambor patético se falas no meu ouvido: ‘não esqueço você’. Manchas de luz na parede, uma jarra pequena com três rosas de plástico. Tudo no mundo é perfeito e a morte é amor.
BILHETE DA OUSADA DONZELA
Jonathan, há nazistas desconfiados. Põe aquela sua camisa que eu detesto – comprada no Bazar Marrocos – e venha como se fosse pra consertar meu chuveiro. Aproveita na terça que meu pai vai com minha mãe visitar tia Quita no Lajeado. Se mudarem de ideia, mando novo bilhete. Venha sem guarda-chuva – mesmo se estiver chovendo.
Não aguento mais tio Emílio que sabe e finge não saber que te namoro escondido e vive te pondo apelidos. O que você disse outro dia na festa dos pecuaristas até hoje soa igual música tocando no meu ouvido: ‘não paro de pensar em você’. Eu também, Natinho, nem um minuto. Na terça, às duas da tarde, hora em que se o mundo acabar eu nem vejo. Com aflição, Antonia.
MURAL
Recolhe do ninho os ovos a mulher nem jovem nem velha, em estado de perfeito uso. Não vem do sol indeciso a claridade expandindo-se, é dela que nasce a luz de natureza velada, é seu próprio gosto em ter uma família, amar a aprazível rotina. Ela não sabe que sabe, a rotina perfeita é Deus: as galinhas porão seus ovos, ela porá sua saia, a árvore a seu tempo dará suas flores rosadas.
A mulher não sabe que reza. Que nada mude, Senhor.
MATER DOLOROSA
Este puxa-puxa tá com gosto de coco. A senhora pôs coco, mãe? – Que coco nada. – Teve festa quando a senhora casou? – Teve. Demais. – O quê que teve então? – Nada não, menina, casou e pronto. – Só isso? – Só e chega.
Uma vez fizemos piquenique, ela fez bolas de carne pra gente comer com pão. Lembro a volta do rio e nós na areia. Era domingo, ela estava sem fadiga e me respondia com doçura. Se for só isso o céu, está perfeito.
O INTENSO BRILHO
É impossível no mundo estarmos juntos ainda que do meu lado adormecesses. O véu que protege a vida nos separa. O véu que protege a vida nos protege. Aproveita, pois, que é tudo branco agora, à boca do precipício, neste vórtice e fala nesta clareira aberta pela insônia, quero ouvir tua alma, a que mora na garganta como em túmulos esperando a hora da ressurreição, fala meu nome, antes que eu retorne ao dia pleno, à semiescuridão.
SHOPSI
Hoje completa um ano que estou fazendo terapia. – E o que você conta ao doutor? – Que tenho medo panifóbico de ver minha mãe morrer. – Só isso? – Só. Coisa à toa, feito não comer três dias porque vi formiga de asas, isso eu não conto mesmo, só converso coisa séria. – E ele? – É muito paciencioso, diz que meu caso é difícil mas tem cura com o tempo e qualquer dia me convida para uma sessão no sítio.
– Você topa? – Tou pensando, vai que aparece lá uma formiga de asas e apronto aquele escândalo, me diz com que cara eu volto no consultório do homem! – Mas ele está lá pra isso. – Isso o quê? – Tchauzinho, Catarina, tchau.
AURA
Quando ele me disse
ô linda, pareces uma rainha, fui ao cúmice do ápice mas segurei meu desmaio.
Aos sessenta anos de idade, vinte de casta viuvez, quero estar bem acordada, caso ele fale outra vez.
É um tom de laranja sobre os montes um pensamento inarticulado de que a Virgem pôs o mundo no colo e passeia com ele nos rosais
TÃO BOM AQUI
Me escondo no porão para melhor aproveitar o dia e seu plantel de cigarras.
Entrei aqui para rezar, agradecer a Deus este conforto gigante.
Meu corpo velho descansa regalado, tenho sono e posso dormir,
Tendo comido e bebido sem pagar. O dia lá fora é quente, a água na bilha é fresca, acredito que sugestionamos elétrons.
Eu só quero saber do microcosmo, O de tanta realidade que nem há.
Na partícula visível de poeira
Em onda invisível dança a luz.
Ao cheiro de café minhas narinas vibram, Alguém vai me chamar. Responderei amorosa, Refeita de sono bom. Fora que alguém me ama, eu nada sei de mim.
TENTAÇÃO EM MAIO
Maio se extingue e com tal luz e de tal forma se extingue que um pecado oculto me sugere: não olhe porque maio não é seu.
Ninguém se livra de maio. Encantados todos viram as cabeças: ‘Do que é mesmo que falávamos?’ De tua luz eterna, ó maio, rosa que se fecha sem fanar-se.
FOSSE O CÉU SEMPRE ASSIM
Como num insuspeitado aposento em casa que se conhece uma janela se abre para cascalho e areia, pouca vegetação resistindo nas pedras, esmeraldas à flor da terra.
Nada exubera. É Minas, um homem com seu cavalo se abeberando no córrego.
A SUSPENSÃO DO DIA
O Cordeiro repousa no mormaço, esquecido dos pecadores que também fazem a sesta, esquecidos de seus pecados.
O mundo cai de cansaço. A salvação, mais que viável, é certa para santos e réprobos.
Molesto sem querer uma formiga e ela debate-se lutando para não morrer.
Rezo por ela delicadamente. O sol define seu curso, o cordeiro desperta seu pastor, a inocente formiga pica minha mão.
Amo Adélia Prado.
Sou fascinada pelas suas poesias.
Faz poesias como nos bons tempos. Essa e a lei de Deus não dos homens Carlos Drummond de Andrade.