“Minha pontuação”, disse ela mais de uma vez, “é a minha respiração.”
Alegria de encontrar na figura exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu não me imaginei, eu existo.
É um assunto difícil de se sentir.
Para vermos o azul, olhamos para o céu. A Terra é azul para quem a olha do céu. Azul será uma cor em si, ou uma questão de distância? Ou uma questão de grande nostalgia? O inalcançável é sempre azul.
Suponho a hipótese de alguém no mundo já ter visto Deus. E nunca ter dito uma palavra. Pois, se nenhum outro viu, é inútil dizer.
Tanto, tanto esforço, e os cabelos caindo infantis.
Há um ponto em que o desespero é uma luz, e um amor.
Assinando, porém, fico automaticamente mais pessoal.
Faze com que ele sinta uma alegria modesta e diária, faze com que ele não Te indague demais, porque a resposta seria tão misteriosa quanto a pergunta.
Abençoa-o para que ele viva com alegria o pão que ele come, o sono que ele dorme, faze com que ele tenha caridade por si mesmo, pois senão não poderá sentir que Deus o amou.
O hábito tem-lhe amortecido as quedas. Mas sentindo menos dor, perdeu a vantagem da dor como aviso e sintoma. Hoje em dia vive incomparavelmente mais sereno, porém em grande perigo de vida: pode estar a um passo de estar morrendo, a um passo de já ter morrido, e sem o benefício de seu próprio aviso prévio.
Perguntaram-me uma vez se eu saberia calcular o Brasil daqui a vinte e cinco anos. Nem daqui a vinte e cinco minutos, quanto mais vinte e cinco anos.
Eu disse a uma amiga: – A vida sempre superexigiu de mim. Ela disse: – Mas lembre-se de que você também superexige da vida. Sim.
Achei melhor parar. E por aí ficamos. Nem sempre esmiuçar demais dá certo.
Mas aí ele me estranhou. Eu não tinha bebido, eu não chorava, eu não brilhava. Estava meio calada. Perguntou-me se eu estava triste. Respondi-lhe que eu era isso.
Ia gostar desse livro, eu sei. Mas morreu antes da publicação. Não fui ao enterro. Porque nem todos morrem.
Também achei Carlinhos triste. Perguntei: por que estamos tão tristes? Respondeu: é assim mesmo. É assim mesmo.
Agora um pedido: não me corrija. A pontuação é a respiração da frase, e minha frase respira assim.
O anonimato é suave como um sonho. Eu estou precisando desse sonho. Aliás, eu não queria mais escrever. Escrevo agora porque estou precisando de dinheiro. Eu queria ficar calada.
O personagem leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e com reações próprias, é tão terrivelmente ligado ao escritor que, na verdade, ele, o leitor, é o escritor.
Eu não queria só ter um passado: queria sempre estar tendo um presente, e alguma partezinha de futuro.
E nasci para escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo. Eu tive, desde a infância, várias vocações que me chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. E não sei por quê, foi esta que eu segui. Talvez porque, para as outras vocações, eu precisaria de um longo aprendizado, enquanto que, para escrever, o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós.
É, mas não estou gostando muito deste pacto com a mediocridade de viver.
Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas, às vezes, a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.
O inspetor Maigret tem uma frase assim: “pour agacer le plaisir de dormir” (para aguçar o prazer de dormir). Pois inventei uma coisa muito boa nesse sentido: quando estou enfim deitada, depois de um dia difícil, penso: e se agora eu tivesse que ir a Bonsucesso para comprar um remédio? Aí estremeço de prazer de estar na cama.
Escrever salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada.
Só uma raiva, no entanto, é bendita: a dos que precisam.
Guimarães Rosa disse que, quando não estava se sentindo bem em matéria de depressão, relia trechos do que já havia escrito. Espantaram-se quando eu disse que detesto reler minhas coisas. Ivo observou que o engraçado é que parece que eu não quero ser escritora. De algum modo é verdade, e não sei explicar por quê.
Guimarães Rosa então me disse uma coisa que jamais esquecerei, tão feliz me senti na hora: disse que me lia, “não para a literatura, mas para a vida”. Citou de cor frases e frases minhas e eu não reconheci nenhuma.
Nesta coluna, estou de algum modo me dando a conhecer. Perco minha intimidade secreta? Mas que fazer? É que escrevo ao correr da máquina e, quando vejo, revelei certa parte minha.
A FOME
Meu Deus, até que ponto vou na miséria da necessidade: eu trocaria uma eternidade de depois da morte pela eternidade enquanto estou viva.
Perdoe eu não ter procurado você para uma conversa entre amigos. Mas uma conversa mesmo: dessas em que as almas são expostas. Porque você tinha lágrimas também. Atrás do riso. Perdoe eu ter sobrevivido.
O sono, quando vem, é como um leve desmaio, um desmaio de amor. Morrer deve ser assim: por algum motivo estar-se tão cansado que só o sono da morte compensa. Morrer às vezes parece um egoísmo. Mas quem morre às vezes precisa muito. Será que morrer é o último prazer terreno?
Por um tempo, atrás, meus filhos andaram me descobrindo. Quero dizer como pessoa, pois como mãe me haviam descoberto desde que nasceram, assim como eu os descobri até antes de eles nascerem. Foi tão curioso como, na descoberta, além de mãe, eles me consideravam uma pessoa com quem conversar. Quando eu ia escovar os cabelos no espelho do banheiro, eles me seguiam para continuar a conversa.
As pessoas que falam de minha inteligência estão na verdade confundindo inteligência com o que chamarei agora de sensibilidade inteligente. Esta, sim, várias vezes tive ou tenho.
Tenho uma amiga, por exemplo, que, além de inteligente, tem o dom da sensibilidade inteligente, e, por profissão, usa constantemente esse dom. O resultado então é que ela tem o que eu chamaria de coração inteligente em tão alto grau que a guia e guia os outros como um verdadeiro radar.
Quando o amor é grande demais torna-se inútil: já não é mais aplicável, e nem a pessoa amada tem a capacidade de receber tanto. Fico perplexa como uma criança ao notar que, mesmo no amor, tem-se que ter bom senso e senso de medida. Ah, a vida dos sentimentos é extremamente burguesa.
Rezo para que o mundo lhe seja sempre bonito de se olhar e de se sentir, rezo para que você goste da comida que come, rezo para você sempre fazer poesia. Fazer poesia é, em si mesmo, uma salvação.
O prazer nascendo dói tanto no peito que se prefere sentir a habituada dor ao insólito prazer. A alegria verdadeira não tem explicação possível, não tem a possibilidade de ser compreendida – e se parece com o início de uma perdição irrecuperável. Esse fundir-se total é insuportavelmente bom – como se a morte fosse o nosso bem maior e final, só que não é a morte, é a vida incomensurável que chega a se parecer com a grandeza da morte.
Toda verdadeira arte é experimentação e, lamento muito, toda verdadeira vida é experimentação…
Trata-se de um bom contista que acabamos de ganhar. E conto, por mais curto que seja, é difícil de se fazer bom.
Cada ser humano recebe a anunciação: e, grávido de alma, leva a mão à garganta em susto e angústia. Como se houvesse para cada um, em algum momento da vida, a anunciação de que há uma missão a cumprir. A missão não é leve: cada homem é responsável pelo mundo inteiro.
ELE SERIA ALEGRE
Cristo seria alegre se não precisasse mostrar ao mundo a dor do mundo: como homem era um ser perfeito e por isso teria alegrias perfeitas.
São José é a bondade humana. É o autoapagamento no grande momento histórico. Ele é o que vela pela humanidade.
Thoreau era um filósofo americano que, entre coisas mais difíceis de se assimilar assim de repente, numa leitura de jornal, escreveu muitas coisas que talvez possam nos ajudar a viver de um modo mais inteligente, mais eficaz, mais bonito, menos angustiado.
Repito por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena!
Um dia uma folha me bateu nos cílios. Achei Deus de uma grande delicadeza.
Enquanto escrevo, levanto de vez em quando os olhos e contemplo a caixinha de música antiga que Lúcio me deu de presente: tocava como em cravo a “Pour Élise”. Tanto ouvi que a mola partiu. A caixinha de música está muda? Não. Assim como Lúcio não está morto dentro de mim.
A quem devo pedir que na minha vida se repita a felicidade? Como sentir com a frescura da inocência o sol vermelho se levantar? Nunca mais? Nunca mais. Nunca.
Um dia desses, ao ouvir um “seja você mesma”, de repente senti-me entre perplexa e desamparada. É que também de repente me vieram então perguntas terríveis: quem sou eu? Como sou? O que ser? Quem sou realmente? E eu sou? Mas eram perguntas maiores do que eu.
Sou o que se chama de pessoa impulsiva. Como descrever? Acho que assim: vem-me uma ideia ou um sentimento e eu, em vez de refletir sobre o que me veio, ajo quase que imediatamente. O resultado tem sido meio a meio: às vezes acontece que agi sob uma intuição dessas que não falham, às vezes erro completamente, o que prova que não se tratava de intuição, mas de simples infantilidade.
Gafe é a hora em que certa realidade se revela.
Bebo depressa demais, e não há alternativas: ou praticamente adormeço dentro de mim e fico morosa, pensativa sem que um pensamento se esclareça como descoberta, ou fico excitada dizendo tolices do maior brilho instantâneo. Mas – mas há um instante mínimo nesse estado em que simplesmente sei como é a vida, como eu sou, como os outros são, como a arte deveria ser, como o abstracionismo por mais abstrato não é abstrato. Esse instante só não vale a pena porque esqueço tudo depois, quase na hora. É como se o pacto com Deus fosse este: ver e esquecer, para não ser fulminada pelo saber.
Mas já que se há de escrever, que ao menos não esmaguem as palavras nas entrelinhas.
Laranja na mesa. Bendita a árvore que te pariu.
Não é fácil lembrar-me de como e por que escrevi um conto ou um romance. Depois que se despegam de mim, também eu os estranho. Não se trata de transe, mas a concentração no escrever parece tirar a consciência do que não tenha sido o escrever propriamente dito.
Com uma amiga chegamos a um tal ponto de simplicidade ou liberdade que às vezes eu telefono e ela responde: não estou com vontade de falar. Então digo até logo e vou fazer outra coisa.
O tempo não é a duração de uma vida. O tempo antes de nós é tão eterno quanto o tempo à nossa frente.
Zagallo é moço, fino de corpo, as pernas não são deformadas por uma musculatura violenta, como as de certos jogadores profissionais. É o tipo do bom rapaz e do bom colega. Senti-o logo que me apresentei a ele e disse-lhe em que trabalhava. A partir desse momento, ele me chamou sempre de “você” e me tratou como se trata um colega de trabalho, trabalhos diferentes, mas trabalho.
Uma frase de Bernard Berenson, o crítico de arte. Usei-a como epígrafe, talvez sem mesmo que tivesse muito a ver com o livro, mas não resisti à tentação de copiá-la. Só que cometi um erro: não a traduzi, deixei em inglês mesmo, esquecendo de que o leitor brasileiro não é obrigado a entender outra língua. A frase em português é: “Uma vida completa talvez seja a que termine em tal plena identificação com o não eu, que não resta nenhum eu para morrer.”
Escrever o que se tornará depois um livro exige às vezes mais força do que aparentemente se tem. Sobretudo quando se teve que inventar o próprio método de trabalho, como eu e muitos outros. Quando conscientemente, aos 13 anos de idade, tomei posse da vontade de escrever – eu escrevia quando era criança, mas não tomara posse de um destino – quando tomei posse da vontade de escrever, vi-me de repente num vácuo. E nesse vácuo não havia quem pudesse me ajudar.
E tudo era feito em tal segredo. Eu não contava a ninguém, vivia aquela dor sozinha. Uma coisa eu já adivinhava: era preciso tentar escrever sempre, não esperar por um momento melhor porque este simplesmente não vinha. Escrever sempre me foi difícil, embora tivesse partido do que se chama vocação. Vocação é diferente de talento. Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir.
QUANDO CHEGAR A HORA DE PARTIR
– Você compreende, não é, mamãe, que eu não posso gostar de você deste mesmo modo a vida inteira.
O DEUS DE CADA HOMEM
Quando digo “meu Deus” afirmo a propriedade. Há mil deuses pessoais em nichos da cidade. Quando digo “meu Deus”, crio cumplicidade. Mais fraco, sou mais forte do que a desirmandade. Quando digo “meu Deus”, grito minha orfandade. O rei que me ofereço rouba-me a liberdade. Quando digo “meu Deus”, choro minha ansiedade. Não sei que fazer dele na microeternidade.
— Carlos Drummond de Andrade
Nelson, você fala em encarnação e em vidas passadas. Você é esotérico? Ou teosofista? Acredita na reencarnação?
– Sou apenas cristão, se é que eu o sou. A única coisa que me mantém de pé é a certeza da alma imortal. Recuso-me a reduzir o ser humano à melancolia do cachorro atropelado. Que pulhas seríamos se morrêssemos com a morte.
– Você está gostando de conversar comigo?
– Profundamente. O que conta na vida são os momentos confessionais.
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é meramente palavra, é mais entrelinha. Quando essa não palavra morde a isca, escreveu-se alguma coisa. Uma vez que se pescou a entrelinha, podia-se com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou em si própria a palavra indispensável.
– Criar um quadro é criar um mundo novo. O artista é o primeiro espectador de sua obra. As soluções anteriores, os conhecimentos adquiridos não servem para a obra nova. Eu só consigo pintar quando consigo esquecer o que aprendi. Se não fosse assim, creio que estaria apenas a refazer os quadros já pintados. E, portanto, teriam apenas o mérito de uma cópia, de uma réplica.
Mas tudo isso era rodeado pelo pai, e ela estava bem dentro dessa pequena terra na qual caminhar de mão dada era a família.
Antes de adormecer, na cama, no escuro. Pela janela, no muro branco: a sombra gigantesca e balouçante de ramos, como de uma árvore enorme, que na verdade não existia no pátio, só existia um arbusto magro; ou era sombra da Lua. Domingo ia ser sempre aquela noite imensa e meditativa que gerou todos os futuros domingos e gerou navios cargueiros e gerou água oleosa e gerou leite com espuma e gerou a Lua e gerou a sombra gigantesca de uma árvore apenas pequena e frágil. Como eu.
Rezei pelo meu filho que eu não sabia como ia voltar. Mas de repente me deu uma grande calma. Eu disse para minha amiga: pode ir para sua casa e eu vou dormir, que estou caindo de sono. Ela foi, demorou uma hora para atravessar Botafogo. Deixei um bilhete para meu filho. E fui dormir. Eu havia confiado em Deus.
Se eu pudesse, deixava meu lugar nesta página em branco: cheio do maior silêncio. E cada um que olhasse o espaço em branco, o encheria com seus próprios desejos.
É preciso antes saber, depois esquecer. Só então se começa a respirar livremente.
Nota: um dia telefonei para Rubem Braga, o criador da crônica, e disse-lhe desesperada: “Rubem, não sou cronista, e o que escrevo está se tornando excessivamente pessoal. O que é que eu faço?” Ele disse: “É impossível, na crônica, deixar de ser pessoal.”