Confesso que não me entristeci com a morte de Miguel Livramento por um único motivo: imaginei a felicidade no Céu. Para quem é leitor deste Blog e não faz ideia do que estou falando, faleceu dias atrás o jornalista Miguel Livramento, um dos maiores que tive a honra de ouvir.
Acho que não conheço um comunicador ou jornalista que não é fissurado em figuras icônicas, e apesar de não ter conhecido Miguelzinho ao vivo (pelo que lembre) ele influenciou diretamente uma geração de comunicadores como eu e tantos amigos.
Aldirio Simões, outro que nos deixou precocemente, escreveu em 1997 o importante e infelizmente pouco conhecido entre as gerações mais novas “Retratos à Luz de Pomboca”, um livro de rápidas biografias dos sujeitos que fizeram acontecer aqui na Ilha da Magia, Floripa. Você consegue achar este livro na Estante Virtual.
E eis seu texto na íntegra “Miguel Livramento: o narrador da moda”, que trago em primeira mão neste Blog.
Vai com Deus, Miguel, mô quirido.
“O rótulo de “o narrador da moda”, foi estampado pelo saudoso radialista Carlos Alberto Campos. Embora seia o rádio a sua maior paixão, Miguel Livramento é estrela do mais famoso programa esportivo da televisão catarinense ao lado do decano Roberto Alves, exibindo no vídeo o seu manequim tamanho P com roupas de grife, ternos muito bem recortados, em que se destacam, preferencialmente, o azul e o branco, as cores do seu Avaí.
Um vaidoso comunicador com cerca de trinta anos de praia e que respira futebol vinte e quatro horas por dia, tornou-se conhecido como um comentarista polêmico, capaz de contabilizar a antipatia da torcida de seu próprio clube.
– Todo locutor esportivo tem o seu clube de coração. Tem um aí que diz ser Paula Ramos para não se comprometer.
Refere-se ao companheiro Roberto Alves, igualmente avaiano de carteirinha. Livramento foi um dos primeiros a ser agraciado com o Troféu Manezinho da Ilha, sendo apontado, por unanimidade, como um autêntico mané, embora nascido em Biguaçu. E nem poderia ser de outra forma. É daqueles que, mesmo metido dentro de uma vistosa fatiota, certamente não vai perder as características de um manezinho absolutamente genuíno, na forma de falar, de se expressar, sem deixar de ser irreverente e faroleiro. Ele é, decididamente, um sujeito que dispensou roteiros para vencer os capítulos da vida.
Este narcisista que adora o espelho e esconde a idade – “idade é coisa do passado” faz merchandising de sua vaidade. Vai diariamente ao cabeleireiro, não dispensa o cinto e os sapatos brancos, mas confessa que não está preparado para submeter-se a uma possível plástica facial. “Eu sou bonito sim mesmo. O meu amigo Roberto Alves é que está precisando, tá ficando com umas sobrinhas no pescoço”. Amigos pessoais, dentro e fora da profissão, inclusive sócios de uma empresa de publicidade, eles são peças fundamentais da equipe esportiva da Rede Record e da Rádio Guarujá. As discussões e brigas simuladas no vídeo divertem os telespectadores, com o irrequieto Miguel respondendo as provocações do parceiro, vociferando manezisses com frases prontas: “Não confundir bife à milanesa, com bife ali na mesa”.
Ele não sabe explicar porque, mas sua grande aspiração era ser alfaiate de profissão. Chegou, inclusive, a apren-diz. Talvez justifica-se aí o seu estilo almofadinha. “É por isso que eu gosto de andar todo arrumadinho”. A cidade perdeu um alfaiate, mas ganhou o “narrador da moda”, graças a Modelar, que passou a vender ternos prontos em até vinte e quatro prestações. Sem poder competir com o comércio de roupas prontas, Miguel Livramento foi trabalhar como caixa da Eletromar, na rua João Pinto, em 1960.
– Eu já era vidrado em rádio. Então ficava na porta da loja, vendo os locutores passarem. Figurões como o Oscar Berendt, Eugênio Luiz do Livramento, Carlos Alberto Cam-pos, Nazareno Coelho, Eleazar Nascimento, atuavam nas rádios Anita Garibaldi, Guarujá e Diário da Manhã, que ficavam nas proximidades. Entravam na loja para conhecer as radiolas que vendíamos. Era a forma que eu tinha de me aproximar deles.
Ficou conhecido de todos os locutores, em pouco tempo. Diariamente ficava ligado na rádio Anita, ouvindo principalmente os programas esportivos. Fanático torcedor do Flamengo, tinha o hábito de ler o Jornal dos Sports. Conhecia, então, todo o noticiário do futebol brasileiro. “Um dia, o Evaldo Bento comentou na rádio sobre a morte do jogador Gama, que jogava no Metropol. Eu tinha lido no jornal que foi o irmão dele que havia falecido. Liguei para o Bonio me botou no ar”.
Era o empurrãozinho que faltava. Na mesma semana, Evaldo Bento foi a Lages transmitir o jogo entre Internacional e Avaí, levando o Miguelzinho como convidado, e este acabou comentando a partida. No dia seguinte, Livramento ficou pasmo quando Brígido Silva entrou na loja para cumprimenta lo. Em curto espaço de tempo estava no Estádio Adolfo Konder trabalhando como repórter de campo, num amistoso entre Avaí e Flamengo.
Com a venda da Rádio Anita Garibaldi, o manezinho foi para a rádio Jornal A Verdade, a convite do Padre Quinto, ingressando na equipe de esportes, que ele classifica como uma das melhores de todos os tempos. Atuou ao lado de Adison Sanches, Murilo José, Newton César Viegas, Brígido Silva e Carlos Alberto Campos. Era tudo o que ele queria.
Foi Iracema de Andrade quem abriu as portas, em definitivo, para que Miguel Livramento se firmasse no rádio como comunicador. O seu programa de variedades está há mais de vinte anos no ar, sempre dividindo a liderança do horário com uma frase que ficou identificada na maioria dos receptores da cidade: “Alô, minha gente amiga..
– Tudo o que consegui na vida, devo ao rádio. Se me permitissem escolher entre a televisão e o rádio, certamente ficaria com o rádio.
Com o Flamengo freguês de carteirinha do Botafogo de Garrincha, Didi e Nilton Santos, desde cedo Miguel criou ojeriza por qualquer camisa alvinegra, estimulado também pelas gozações do Eleazar Nascimento. Conta que quando foi assistir ao primeiro clássico, o primeiro time a entrar em campo tinha a camisa em preto-e-branco, exatamente o Figueiren-se. Tremeu na base, e ficou avaiano desde garotinho.
Passando por quase todas as rádios da cidade, a sua vinculação com o futebol, o estilo todo pessoal, e identificado com o povo, abriu-lhe também as portas da televisão, inclusive as da RBS TV. Mas foi na antiga TV Cultura, efetivado no Programa Terceiro Tempo, ao lado de Roberto Alves, Fernando Linhares e Mário Inácio Coelho, que alcançou notória popularidade.
A exemplo da maioria dos comunicadores esportivos, Miguelzinho também tentou a sorte no futebol, passou pela ponta-direita do modesto Tamandaré, sem deixar saudades. “Confesso, eu não era bom não. Tava querendo tirar leite de pedra”. Como repórter de campo, narrador e comentarista, este anti-Figueirense jogou-se nos braços avaianos, também como crítico mordaz do clube, arrumando, inclusive, encrenca com a torcida azurra. “Como pai, se eu chamo atenção de um filho é para o bem dele. Não posso concordar que o time do meu coração coloque jogador em leilão – referindo-se ao Claudiomir – e pague jogador com cheques sem fundos”, compara.
Livramento diz não encontrar explicações para justificar o seu envolvimento com o Avaí. “É coisa que não se ex-plica”. Quanto às dificuldades de relacionamento com as tor. cidas de Avaí e Figueirense, esclarece que nunca foi de ficar em cima do muro. Já foi vaiado no Orlando Scarpelli e na Ressacada, xingado de tudo, “até de filho da dutra. Tem repórter de campo que faz média com as torcidas. Eu não. É muito fácil eu achar o meu filho bonito. Quero ver é tu achar o meu”.
Recorda do folclore do velho Estádio Adolfo Konder, onde chegou a ser preso porque xingou o juiz de corno. “Uma vez o Pedro Lopes, que era diretor técnico da Federação Catarinense de Futebol (FCF), vetou o Estádio do Avaí para o jogo contra a Chapecoense, alegando que o alambrado tinha buracos, não oferecia segurança. Aí o Salum mandou o Casinho tapar o buraco maior com uma tarrafa. Foi uma confusão. O Avaí entrou em campo na rua Bocaiúva e a Chapecoense no Orlando Scarpelli”.
O futebol de Florianópolis regrediu, na visão nervosa do especialista Miguel Livramento. “Quando o Figueirense inha o Ortiga, como presidente e o Avaí, o Salum, tudo era diferente: tínhamos dois grandes times na Capital. Lembro que uma vez os dois dirigentes entraram de madrugada no programa Zero Hora Esportiva, na rádio Jornal A Verdade, que começava à meia-noite sem hora para terminar, para promover o clássico, um caça-níquel. Não tinham dinheiro nem sequer para comprar camisas. Foram disputados três jogos e os dois clubes arrecadando uma boa renda, um faz-me-rir que deixou todo mundo numa boa”.
Pode parecer incrível, porém Livramento defende uma fusão entre os dois clubes da Capital, apostando na salvação do falido futebol de Florianópolis. “Aqui é a terra do já teve. Não tenho mais nenhuma ilusão de ver o Avaí e o Figueirense disputando um campeonato nacional”. Alega que existe, inclu-sive, crise de dirigentes competentes. “E o que eu sempre digo. Forte é aquilo que não é fraco. Coisa ruim a gente manda embora”.
Fazendo o estilo caras e bocas na televisão, bem ao gosto do povo, garante que as discussões com o companheiro Roberto Alves no vídeo não é nada combinado, são o resultado de opiniões diferentes, “por isso, às vezes, engrossamos o caldo. Tem dia que eu e o Roberto não entramos no mesmo camarim nem para trocar de roupa. Ele até já me ofendeu. Eu fazia um comentário contra a federação e ele começou a botar panos quentes. Aí eu disse: tás muito puxa-saco. Ele respondeu no ar: puxa-saco é coisa do teu nível. Aí não prestou. Comigo é assim: bota salto 15, recebe a biabada”.
As discussões ficam mesmo na televisão. Logo depois um liga para o outro, um jantar, e tudo fica esclarecido, sem nenhuma mágoa. Sempre falando muito à vontade, crítica a falta de profissionalização das emissoras de Florianópolis.
Guarda, sem boas recordações, uma nota de falecimento que leu no ar, e que trouxe-lhe grandes aborrecimentos. “Eu estava naquele dia em que nada dá certo. Era para eu ler comunicamos com pesar, eu disse comunicamos com prazer o falecimento… Foi terrível”.
Manezinho assumido e inserido no contexto da cidade, afirma que não vai mudar o seu estilo. “Me sinto bem assim. Me orgulho de ser manezinho e reconhecido. As pessoas, inclusive, gostam de me imitar”. Pai de quatro filhos, todos avaianos, é claro, Miguelzinho confessa que ainda não deseja ser avô, por uma razão muito simples: “Não estou preparado para dormir com a avó”. Uma boa casa, com direito à piscina, carro do ano, o “narrador da moda” ilustra que não é rico, mas tem o que sempre quis.
– Deus tem sido muito bom pra mim.”