Há pessoas que partem e que temos certeza que irão ficar para sempre em nossa mente e nossos corações. Que vamos citar, lembrar, que vão deixar uma lacuna em uma ação que nos é cotidiana. Pessoas que deixaram uma marca em nossa vida, de uma forma ou de outra.
Uma dessas pessoas com certeza será o Padre Vitor Galdino Feller, nosso Pe. Vitor.

Há exatos 15 anos eu era chamado para participar de um retiro até então desconhecido: o Curso de Emaús da Arquidiocese aqui de Florianópolis.
Este Movimento Católico existia há anos e já levou milhares de jovens a conhecer a figura de Cristo em suas vidas, utilizando uma metodologia atemporal. Após longos anos, Monsenhor Bianchini que trouxe o Emaús para Floripa estava velho demais e seu sucessor, Pe. Rogério Groh faleceu de câncer após apenas 2 anos a frente do Movimento. Em 2009, Pe. Vitor Feller assumia como Orientador Espiritual, e um ano depois lá eu estava realizando o retiro.
A imagem que eu tinha de maioria dos Padres era de senhores de idade que de jovem não tinham nada, nem o ímpeto e a vontade. Até curtia algumas Missas com Pe. Márcio Vignoli e posteriormente Pe. Vânio da Silva na Paróquia dos Ingleses, e secretamente gostava muito do Pe. Léo da Canção Nova, que via da TV – mas com nenhum deles tive contatos pessoais.
Pe. Vitor, de primeira, não parecia um Padre que queria se tornar engraçado, ou conquistar os jovens sendo quem não era. Pelo contrário. Ele era o que era: um homem firme no que tange as coisas de Deus; firme na hora que falava de Cristo, carregado de uma certeza quase irretocável; e ao mesmo tempo completamente acessível a tantos jovens que o rodeavam naturalmente, nos Cursos e atividades do Emaús.
Com a morte de Monsenhor Bianchini, nunca conseguiu fugir da velha comparação entre palestras, escolhas, maneiras de lidar mas isso não o parecia incomodar – como que se pensasse: “Ao Pe. Bianchini, suas obras; a mim, minhas próprias obras”. E que bom termos tido esta pluralidade de visões, ações, e escolhas. Pe. Vitor certamente era um homem do seu tempo e com desafios novos a vencer.
Aos poucos, fui tendo mais contato com ele pois todo Cantor (nome que se dá aos músicos das Missas e atividades do Emaús) é muito ligado ao Padre, naturalmente.
“Pe. Vitor pediu pra não tocarmos Pós-Comunhão, pra deixarmos a Missa em silêncio”. Lembro que foi uma das primeiras diretrizes que ouvi das preferências dele.
Como jovem, bem exagerado que era, protestei em silêncio querendo tocar aquelas músicas dos antigos CDs de Emaús ou aplicar um “momento de mais emoção” à Celebração. Mal entendia eu que no silêncio mora algo tão importante ou mais do que a reflexão musical.
Acredito que o grupo de Cantores inteiro foi se adaptando e entendendo aos poucos as preferências que aquele homem, o mais litúrgico que já conheci, tinha.
Esta obsessão litúrgica fez nosso grupo entender perfeitamente a beleza da Liturgia bem montada e seguida à risca. Existem dezenas de músicas para o “Perdão” em uma Missa mas um bom e simples “Senhor, Tende Piedade de nós” já basta muitas vezes. Por sinal, o próprio Pe. Vitor nos trouxe uma melodia para o Ato Penitencial, que tocamos até hoje. Ele era o que pregava.
Cerca de um ano depois de tocar nas Missas quase todo sábado, fui entender a grandeza do que significava Eucaristia. Acho que a curiosidade veio antes do entendimento; o lado social “ver os amigos” antecipou a fome e sede de um Deus vivo e sacramental que através do Pe. Vitor, se fazia Pão e Vinho a cada semana nas Missas da Igreja Nossa Senhora da Conceição, 19h de cada sábado.
Nos Cursos de Emaús não adiantava: eventualmente a turma achava no Padre, seu xodó, a medida que o retiro ia crescendo. Quando cultivava seu antigo bigode, era até comparado a Ned Flanders, personagem dos Simpsons, para risada (sadia) dos jovens.
Em momentos de louvor e festa, era o querido Padre chamado para dancinhas e para adentrar o “palco” da alegria Pascal dos jovens. Veja só: um homem com tamanho conhecimento, se apequenando a este nível para estar próximo da juventude que tanto amava. Todo artista tem de ir aonde o povo está.
O contrário disso seria um isolamento: um intelectual trancado em sua biblioteca ou seu quarto com impacto definitivamente menor em seu “servir”.
Para mim, seu momento chave era quando falava dos Sacramentos. Não existia fala que mais encaixava com Pe. Vitor do que essa. Falava da Santa Igreja com tanto prazer que dava inveja. Dava exemplos reais, contava “causos”, sinto que se realizava como homem, como Padre, era seu ápice.
Sempre contava o causo com Pe. Vânio: enquanto estava refletindo sobre não ter uma Paróquia, Pe. Vânio o lembrou: “Ora, quantos membros existem no Emaús entre jovens e adultos?” – e juntos concluíram com alegria que o Movimento de Emaús era sim uma “espécie de Paróquia” em sua vida.
Nunca o vi chorar. Nunca mesmo. Mas para mim fazia parte do seu lado racional e intelectual: Deus está vivo, tão certo como o ar que respirava. Lembro que no meu Casamento e tantos outros sempre repetia: “Nunca vi Deus, mas ao ver este casal, eis uma prova de que Deus existe e está aqui”. Recordo-me de Lope de Vega que escreveu: “Devo ser louco, se não sou santo”.
Assim como Jesus Ressuscitado, Pe. Vitor parecia aparecer de maneira diferente e peculiar para cada pessoa. Ora professor, ora Orientador, ora confessor, ora Coordenador de Pastoral… Deus era criativo com seu servo Vitor. Muita gente que conheço não aguentaria um dia sequer na pele do Pe. Vitor, tamanha eram as atividades que tinha.
Considero que os anos de 2013-2015 foram os que conheci o Pe. Vitor “Vigário Geral” da Arquidiciocese de Florianópolis. Isso porque o primeiro emprego CLT da minha vida foi lá, como Assessor de Comunicação, ajudando com o Jornal da Arquidiocese, dentre outras entregas corriqueiras.
Já que o Pe. Vitor morava na Cúria, estava sempre por lá e junto participava das reuniões do Jornal, bem como fazia comigo a correção ortográfica de cada edição. Chegava ele, impecavelmente dentro da deadline combinada, com seu Jornal numa pré-edição cheia de rabiscos. Muito professor de português ficaria no chinelo.
Muitas vezes chegava de bermuda e tênis de caminhada, corrigia o jornal e ia dar sua tão importante caminhada matinal na Beiramar – encaixada à risca em uma rotina atarefada em suas múltiplas funções.
Sobre a correção ortográfica, muita gente falaria: “Ah, ninguém nem vai perceber, imprime assim mesmo que estou sem tempo”. Com o Pe. Vitor, o capricho com as coisas de Deus era obrigação. O zelo, carinho, o cuidado fez que muita gente ao seu redor fosse educada indireta ou diretamente assim. E assim também era com as dezenas de músicas que compomos para o Emaús em seus Festivais visando os ENACES (Encontro Nacional de Cantores de Emaús).
Certa vez compus uns versinhos para ele em honra a seus 70 anos, que finalizavam assim:
Padre, muitos anos de vida
Que vivas tal honrosa vocação
E que saiba que o amamos
Do fundo do coração
E que ele respondeu: “Obrigado, Lui, pelo carinho. Deus te recompense, te abençoe e te guarde em seu amor.” – palavras que guardarei.
Quando segui no caminho da Tecnologia (e não Teologia), senti muita falta de ter uma convivência mais rotineira com ele – especialmente pois comecei a dar os primeiros “não” devido a rotina mais pesada de trabalho dos anos que viriam. Lembro que nesta correria (ou seria uma não priorização para as coisas de Deus?) interrompi até a Direção Espiritual que começara com ele, na própria Cúria.
Os anos foram passando, os Cantores se renovando, e pela graça de Deus, vi a juventude de Emaús cada vez mais apegada a figura deste querido Padre. Aos poucos, ele também foi entendendo a dinâmica do Movimento, participando de diversos encontros pelo País e ajudando a moldar o futuro do Emaús.
Por volta de 2016 fiz meu primeiro e único curso de Extensão na FACASC (ITESC): Teologia Sistemática. As aulas eram segundas a noite e sinceramente foram muito especiais para mim. Acho que se ganhasse na Megasena, faria Teologia (não sei se uma graduação inteira), mas ao menos esse tipo de curso. A qualidade das aulas fazia o tempo voar e lá tive a honra de estudar temas profundos como Cristologia; Antropologia Teológica; Teologia da Graça; Mariologia; Escatologia; dentre outros – com duas das matérias dadas pelo próprio Pe. Vitor, na época Diretor da FACASC.
Se com um curso relativamente simples deste a régua era alta, que dirá com tantos seminaristas e leigos que se formaram na FACASC em Cursos de Graduação ou Pós – todos nutrindo um carinho enorme pela figura de Pe. Vitor Feller, que dizia no começo da Teologia: “Agora é a hora de deixarmos nossa roupa da Catequese pendurada” – como se falasse: “Vamos em águas mais profundas, meus amigos!”.
Tive acesso e li por inteiro apenas 3 livros do Padre até hoje: A revelação de Deus a partir dos excluídos (1995); Deus-amor: a graça que habita em nós (2003); O sentido da salvação (2005). Lembro que achei todos em sebos virtuais, e queria justamente entender mais o que pensava, como se posicionava, e o que tratava sua teologia.
Basicamente, Pe. Vitor ao menos para mim não era um homem político no quesito ter partidos ou políticos que empunharia uma bandeira publicamente por aí, mas um homem comedido que não relativizava os pobres descritos claramente no Evangelho – acredito que muito por sua trajetória Paroquial em comunidades com muitas famílias menos abastadas, e certamente por sua história familiar no interior catarinense, com seus pais e tantos irmãos, que admito, pouco conheço. Era portanto, um homem muito ligado às verdades dos Evangelhos – firme também nisso.
Homem justo, sabia lidar com as limitações humanas ao seu redor — como preferências pessoais, egos inflados e disputas sobre o que é mais ou menos certo — algo comum sempre que seres humanos se reúnem tentando fazer o seu melhor ou aquilo que acreditam ser o certo. Como citaria Guimarães Rosa, parecia que sempre enxergava a “Terceira Margem”, uma outra via que passava despercebida e que ninguém enxergava. Sempre de foram sóbria e comedida.
E mesmo assim, nunca ouvi ele falando mal de alguém. Sua vida interior era tão forte e levada a risca, que com certeza levava alguns lamentos direto ao Pai – ou a seus grandes amigos, outros Padres.
Amava os jovens, mas também adorava os Casais de Emaús que sempre o levavam para jantar, sair, chamar para suas casas. Infelizmente só recebemos Pe. Vitor 1x para algo que não tivesse relação com alguma atividade do Movimento, uma pizza com vinho. Foi pouco.
Tinha um profundo e belo amor pelo Sacerdócio, por ser um Padre. “Vocação acertada; vida feliz”, como diria o ditado. Quando falei sobre o motivo do “Dia do Padre” em sua presença, levantou os braços como que concordando com os parabéns que recebia neste dia – arrancando um sorriso no rosto dos presentes.
Ao mesmo tempo, não negava os novos e grandes projetos que chegaram em sua vida mesmo nos anos finais, como a causa de Beatificação de Marcelinho Câmara. Poderia muito bem ser voto contrário ou nadar contra a maré, ou simplesmente se abster – mas colaborou do começo ao fim da vida, como pôde, para ajudar a chegar no estágio que a causa está agora.
Recentemente fui chamado para dar uma desafiadora palestra e foi então que li seu livro “Deus-amor: a graça que habita em nós” e tive um lampejo da genialidade do homem que lidamos como Orientador Espiritual por tantos anos: escrever e organizar um livro deste não é para qualquer um. E digo isso pois li muito material (incluindo alguns livros) antes de chegar nesta obra que para mim devorou os autores anteriores pela lucidez que apresentava.
No dia da palestra, um certo alívio: Pe. Vitor não estava no auditório. Se eu falasse alguma besteira sem querer, ia passar batido. Até que ele entra e senta para ouvir. O coração foi a mil e não sei se errei, mas no final ele me disse: “Muito obrigado”, e isso bastou para mim.
Seria a última vez que veria frente a frente seus olhos verdes e apertaria sua mão.
Na Missa de Chegada do 100o Emaús Masculino, víamos este Padre que estava com leucemia, mais vivo do que nunca. Acho que os jovens eram como gasolina para o tanque dele: eram sinais de um Deus que Ressuscitava e seus 72 anos de corpo contrastavam com um vigor de um jovem de 25 anos.
Se me perguntassem dez vezes, responderia todas que não acreditava que o fim da vida do Pe. Vitor seria deitado em uma cama de hospital, morrendo aos poucos. Nada disso.
Com ele seria o seguinte: servir, servir, servir até o último dia de sua vida. Como diria o Santo Cura D’Ars: “Eu Vos amo, meu Deus, e o meu único desejo é amar-Vos até o último suspiro da minha vida.”
O amor de Vitor Galdino Feller estava justamente no servir. E serviu até o último suspiro. Até o último.
Como alguém comentou nas redes: no silêncio de uma tarde, ele partiu. Quando ninguém esperava. Subitamente. Se foi nosso Padre, nosso amigo, nosso irmão. Nossa referência.
Inicia agora, assim como em 2010 no falecimento de Monsenhor Bianchini, a geração do “ouvi falar”. Incomparável, único, com seu jeito de ser e de falar das coisas de Deus, já deixa saudades.
Esses dias vi uma linda cena da Última Ceia na 5a temporada do seriado “The Chosen”.
Os apóstolos e discípulos recitavam um lindo mantra judeu chamado “Dayenu”, agradecendo: “Teria sido suficiente!” ao final. E recriei uma versão especial para finalizar este texto:
Se Pe. Vitor tivesse apenas acolhido os jovens com sua presença firme e serena, e não tivesse jamais subido ao palco para se juntar a alegria eles no Emaús,
- teria sido o suficiente.
Se tivesse apenas sido um excelente teólogo, com livros profundos e uma fé pensada à luz do Concílio Vaticano II, e não tivesse se preocupado em traduzir isto no dia a dia para tocar também o coração dos leigos, jovens e homens simples,
- teria sido o suficiente.
Se tivesse apenas corrigido com zelo cada edição do Jornal da Arquidiocese,
e não tivesse deixado rastros de capricho e amor em cada vírgula,
- teria sido o suficiente.
Se tivesse apenas sido liturgicamente exigente, nos ensinando a beleza do silêncio e da simplicidade na Missa,
e não tivesse trazido a melodia de um Ato Penitencial que cantamos até hoje,
- teria sido o suficiente.
Se tivesse apenas sido um professor a mais na FACASC,
e não tivesse feito da sala de aula um mergulho em águas profundas para tantos leigos e seminaristas,
- teria sido o suficiente.
Se tivesse apenas rezado conosco, orientado, confessado,
e não tivesse acompanhado com tanta firmeza e doçura o Movimento de Emaús,
- teria sido o suficiente.
Se tivesse apenas vivido com discrição, sabedoria e amor ao sacerdócio,
e não tivesse, até o último suspiro, servido com alegria a Deus e à Igreja,
- teria sido o suficiente.
Obrigado, meu querido Pe. Vitor, por nos fazer entender que quem não vive para servir, não serve para viver. Espero te reencontrar algum dia.

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