Livrasso, li a sua edição original quase 10 anos atrás e li a edição atualizada recentemente por conta dos 30 anos de partida de Senna.
Seguem as melhores frases que apontei:
Ayrton, que havia anos já assombrava mecânicos, engenheiros, jornalistas e namoradas com a capacidade de concentrar-se nos momentos que antecediam à largada, tornando todos à sua volta rigorosamente invisíveis e inaudíveis. Seu olhar, naqueles momentos, parecia estar em outra dimensão. Sua seriedade formava uma muralha da qual poucos ousavam se aproximar, não importando a patente familiar ou a relação contratual.
“O estilo Miltão era o seguinte: se vai fazer, faz direito.”
Ayrton simplesmente não conseguia manter-se na pista molhada: “Foi um desastre. Os caras me passavam por todos os lados. E eu não podia fazer nada. Naquele dia, decidi aprender a andar na chuva.”
— Posso imaginar o que você deve estar passando. Mas no grid lembre-se que você é muito bom. Chico jamais esqueceu o gesto: “A gente era moleque. Ninguém parava para fazer uma reflexão sobre a carreira. Nesse sentido, a carta do Ayrton foi muito especial.”
Era ali que Ayrton fazia um agrado tão frequente como suas vitórias: assim que recebia a coroa de flores que era entregue ao vencedor junto com uma pequena garrafa de champanha, ele chamava Lilian e a enlaçava com a coroa. Era o símbolo da gratidão que ele sentia por sua presença ao lado dele em um período tão decisivo.
Não foi surpresa para Milton, Neyde e Viviane. Eles já vinham sendo avisados, em várias conversas difíceis na cozinha e no escritório da casa da Serra da Cantareira, que aquela situação era dolorosa e insustentável. Em um desses dias, Ayrton fizera um desabafo especialmente duro: — Ninguém mandou me colocar sentado num kart quando eu era pequeno. Experimentei, gostei e agora não peçam jamais para eu desistir. É minha vida!
Em uma época em que a telemetria ainda estava sendo desenvolvida, ele tinha, a bordo daqueles Ralt, o que chamava de “computador móvel.” Os relatórios precisos e ricos em detalhes feitos por Senna ao longo da temporada se tornaram uma atração à parte para os pilotos que o sucederam na West Surrey Racing. Sete anos depois, Rubens Barrichello seria campeão pela equipe e adoraria folhear os mesmos relatórios para saborear as observações de Ayrton sobre ajustes de suspensão, de motor e de aerodinâmica.
“Ayrton enfrentava muito bem a pressão, mas não gostava do que existia em volta. Assim que saía do autódromo, ele mudava, queria ser outra pessoa”.
“Depois da corrida, achei que Senna estava vibrando com aquela exibição brilhante, segundo lugar logo no início da carreira, mas ele estava com raiva, furioso! Aí eu vi como era grande a sua expectativa.”
Senna não sofreu um arranhão, mas a experiência o afetou tanto que Nuno Cobra usou com ele, na época e nos outros acidentes sérios que viriam, um recurso muito particular. Ex-trapezista, Nuno sugeriu a Senna que, nessas ocasiões, fizesse o mesmo que os acrobatas de circo fazem quando caem ou sofrem acidentes potencialmente traumáticos: tentar outra vez, imediatamente, ainda que seja algo mais simples. Na lembrança de Nuno, tão logo teve condições, Ayrton entrou novamente no Toleman e seguiu o conselho: — Ele baixou o cacete, criou uma emoção boa no lugar de uma emoção ruim. E passou a fazer isso pelo resto da vida, sempre trabalhando muito para jamais tirar o pé.
“Ayrton, chegava no final da tarde, ia para o hotel, tomava uma sopa e estava de volta ao boxe uma hora depois. Elio não fazia isso. Ia para o hotel para tomar banho e depois bebia um uísque ou saía para jantar.”
Um outro cartão de Ayrton, aceitando uma sugestão de sua então assessora de imprensa Betise Assumpção, chegaria à casa de Warwick em 1991. E esse certamente não era uma gafe de relações públicas. Eram os pêsames pela morte trágica de Paul, irmão mais novo de Derek, num acidente da Fórmula 3000, no circuito de Oulton Park. Senna foi o único piloto da Fórmula 1 que mandou pêsames e Warwick nunca esqueceria o gesto: “Vou sempre lembrar que estive no grid de largada com Ayrton Senna. Não posso dizer o mesmo por Nelson Piquet, não posso dizer o mesmo por Alain Prost, não posso dizer o mesmo por Nigel Mansell, Patrese ou qualquer outro piloto. Mas posso dizer por Ayrton Senna porque ele impactou não apenas minha vida, mas milhões e milhões de vidas.”
Ele misturava tudo de tal maneira que era praticamente impossível saber onde terminava uma coisa e onde começava a outra.
Nas corridas em que acompanhou Ayrton, Nuno se encarregou de enfaixar as mãos dele. A faixa tinha de cobrir do pulso à palma da mão e Senna fazia questão de que a distribuição do tecido protetor tivesse precisão milimétrica. Nuno tinha de refazer o enfaixamento várias vezes.
‘quem conta um conto aumenta um ponto’.
Nuno Cobra resumiu a infelicidade do Ayrton com o episódio do afastamento de Júnior, lembrando um comentário dele: — Sabe qual é o meu maior amigo, Nuno? — Não. Qual? — É a mala. Ayrton se referia ao ritual solitário nos hotéis do mundo, quando chegava no quarto, abria a mala, tirava dela um pequeno aparelho de som e punha logo uma fita ou CD para tocar. Só depois verificava o tipo da cama, as instalações do banheiro, o telefone, a vista e a maciez dos colchões. Ele tinha que ter música sempre e a mala era sua companheira. A partir daquele dia, algumas despedidas de Senna e Nuno teriam a marca da solidão: — Lá vou eu e a mala.
Ayrton ficou indócil e quando, mais tarde, Lemyr Martins quis saber o que tinha acontecido, a resposta foi irônica: “É o meu carro que precisa de observação, não eu!”
Ele queria que os comissários empurrassem o carro de volta à pista. Os mexicanos fizeram exatamente o contrário: levaram o Lotus para uma área de desaceleração. Ayrton saltou do cockpit furioso e partiu para cima dos comissários mexicanos, distribuindo socos e pontapés. Acabou multado em US$ 15 mil pela FISA.
Do tênis, ele pulava para o windsurf, do windsurf para o jet-ski, do jet-ski para o esqui aquático e deste para as mesas de pingue-pongue. Até de partidas de vôlei e futebol ele participou, obtendo um desempenho, na melhor das hipóteses, sofrível. Renato cansou só de acompanhar: “Ele não ficava mais do que cinco minutos naquelas espreguiçadeiras.”
Quando a noite chegava e o resto da comitiva brasileira se assanhava, Senna já começava a dar sinais de sono. Enquanto os jornalistas e amigos, entre eles Thierry Boutsen, a mulher Patricia e o piloto francês Phillipe Streiff, entravam na ciranda dos drinques, ele não passava do refrigerante. E não demorava muito para se despedir discreta e educadamente de todos e tomar o rumo do quarto para dormir até a hora do almoço do dia seguinte.
“De todos os rivais de Ayrton, incluindo Prost e Mansell, Piquet era o que mais involuntariamente ajudava Senna, pela energia emocional de antagonismo que ele criava. Ayrton tinha tanta raiva que aquilo se tornava uma força. E no Ayrton, o reforço negativo era maior que o positivo. Se você dizia para ele ‘não pode’, aí que ele ia fazer.”
Entender significava, às vezes, às dez da noite, convocar Teramoto para discutir as opções de amortecedores que ele teria para o dia seguinte. Paciente, Hiro espalhava todas as peças numa mesa e explicava detalhadamente o funcionamento de todo o conjunto.
O envolvimento avassalador com cada integrante da equipe McLaren, desde o primeiro treino, não tardou a criar para Ayrton, rapidamente, o tipo de ambiente que ele queria para trabalhar.
Senna reconheceu: “Os erros fazem parte dos homens. Não somos máquinas. Infelizmente cometi um erro. Passei por aquelas chicanes sem problemas 49 vezes e, portanto, elas não devem levar a culpa”.
“Senna precisa derrotar a si mesmo para se tornar campeão. É o que eu chamo de medo da felicidade. Quando a pessoa está muito próxima de alcançar o que mais quer, isso faz com que ela fique sujeita a erros. Inconscientemente, a pessoa passa a sabotar o próprio sucesso.”
— Gerhard, essa curva é muito perigosa. Temos de fazer uma mudança. Um dia alguém vai morrer lá. — Você está certo. Na próxima vez em que formos a Ímola vamos ver o que pode ser feito, como se poderia afastar aquele muro. Pouco tempo depois, durante um treino da Fórmula 1 em Ímola, Berger e Senna caminhariam até a Tamburello e se dariam conta de que era impossível afastar o muro devido a um riacho que passa entre as árvores, logo atrás da curva: “Não pensamos que uma chicane poderia ser a solução, como acabou sendo feito após o acidente do Ayrton. Era impossível fazer alguma coisa lá. E nós aceitamos isso. E o ponto onde estávamos foi exatamente onde Ayrton morreu. Isso é muito triste.”
“Senna podia improvisar. Se ele não tinha um carro do jeito que gostava, ele dizia ‘Ok, não mexam!’ e ia dar voltas até se moldar ao carro. Muito frequentemente, nos testes, Ayrton ficava dizendo: ‘Não gosto desse carro, não gosto desse carro’. No final, pedia: ‘ponham meu carro exatamente como o de Prost’. Nós acertávamos o carro exatamente igual ao de Prost, ele ia para a pista e vencia o Prost.”
A verdade é a seguinte: Ayrton era completamente comprometido com a Fórmula 1. Era a coisa mais importante em sua vida e ele fez muitos, muitos sacrifícios para ser o melhor, num nível ao qual jamais alguém chegou. Ele estabeleceu padrões para os campeões do futuro. E o que mais o fez sofrer foi sua vida particular.
José Luiz ficou impressionado com o ouvido de Senna. Sistema instalado e ligado para demonstração, ele esperava apenas explicar como funcionava o controle de luminosidade. Mas Ayrton percebeu um zunido. José Luiz pensou em silêncio: — Esse cara, que vive sentado com um foguete nas costas, vai escutar o quê? Ligava e desligava e José Luiz não conseguia perceber. Depois de muita concentração e de um pedido de silêncio de Ayrton às pessoas que estavam na sala, ele acabou percebendo o zunido. Era provocado pelo dimmer das lâmpadas. Ayrton explicou logo depois, vitorioso: — Meu amigo, eu ganhei muita corrida por causa do meu ouvido, viu?
“Tem momentos em que eu estou andando no limite e preciso de um pouco mais para superar o adversário. É quando vem a compensação. Forço o passo, mesmo sabendo que logo depois vou sofrer uma queda forte de ritmo. Mas o outro já está superado e vai cair ainda mais.” Em outras palavras, Senna se preparava para desmaiar por último. Ou, como diria Nuno Cobra, o responsável por seu condicionamento físico, treze anos depois daquela corrida histórica: “O Ayrton tinha condição física de ficar cansado. Essa era a diferença. O cara que não tem condição física alivia o pé no acelerador e termina a corrida inteirão.”
Ela também conviveu com algumas manias do namorado. Uma delas tinha origem na obsessão dele por escuridão absoluta na hora de dormir. Ayrton chegava ao ponto de pedir aos comissários de bordo para desligar até as discretas luzes de sinalização da primeira classe dos aviões em que viajava.
— Achei que você estava chateado comigo por causa da brincadeira que o Braga fez. Senna, Marcos não sabia, já estava disputando o GP de Mônaco de 1992: — Cara, você tem que entender que logo mais vou passar duas horas andando a um centímetro do guard-rail. Marcos se lembrou então de como os mortais, parentes, amigos, chefes, namoradas e jornalistas, pareciam transparentes à frente de Senna nos grids de largada, durante aqueles minutos que antecediam ao início das corridas. E perguntou: — O que você fica pensando daquele jeito? — Fico repetindo, na mente, minha melhor volta. O tempo todo.
“Ayrton brigava muito com os engenheiros e mecânicos da Williams. Os japoneses, no tempo da McLaren, ficavam com ele no boxe até de madrugada. Com os ingleses, dava cinco horas e adeus!” Frank Williams não foi para Aida, mas Senna ligou para ele, pedindo algo que nenhum dos pilotos que passaram pela equipe jamais havia pedido: uma reunião com todos os funcionários, na sede em Didcot, na Inglaterra, só para incentivar o time. Galvão Bueno disse que Ayrton queria também ir pessoalmente à sede da Renault, em Paris, justificando: — Esse carro é uma merda. Mas eu vou deixar os caras malucos. Vou fazer o carro ficar bom! A reunião em Didcot aconteceu dias depois. E Patrick Head, que já estava impressionado com “o imenso controle que Ayrton tinha do que faziam com o carro no boxe”, admirou-se com a coragem dele diante de 200 ingleses, ao dizer: — Pessoal, tivemos um mal começo, mas as coisas estão melhorando. Portanto, mãos à obra que nós vamos vencer!
“O Ayrton, pelo estilo de guiar, não poderia ter outro fim. Ele não era um Emerson Fittipaldi da vida. Para quem anda sempre no limite, uma hora alguma coisa dá errado.”
Em meio à avalanche de textos da imprensa, um artigo de Raul Drewnick, publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo no dia seguinte ao acidente, foi uma espécie de síntese do sentimento de milhões de brasileiros: “Você era a nossa esperança (…) E a nossa pequenez, e a nossa insignificância, e a nossa incontornável incapacidade, e o nosso irremediável destino de obscuros coadjuvantes eram esquecidos enquanto perseguíamos com você, em cada reta, em cada freada, em cada curva traiçoeira, em cada manobra arriscada, a glória da liderança, o posto supremo do pódio, os braços erguidos, a taça ostentada (…) Em cada corrida, você renovava em nós a abençoada impressão de que podíamos mais do que podíamos, de que éramos melhores do que éramos, de que valíamos mais do que valíamos (…) Se um de nós vence como esse, por que não havemos nós de sermos respeitados um dia? E andávamos pela rua de nosso bairro miserável, de nossa cidadezinha humilde, de nosso país ignorado com o peito inflado e a cabeça erguida, como se fôssemos conhecidos na Itália, como você, como se fôssemos reconhecidos na Alemanha, como você, como se fôssemos amados no Japão, como você (…). Você era nossa cachaça, nossa consolação.”
Ao receber a roupa das mãos de Juracy, Neyde abraçou o casaco como se fosse gente e ficou cheirando até as lágrimas. Mais tarde, na cozinha da casa, ela revelou um desejo: — Juracy, só te digo uma coisa: quando eu morrer, assim que eu morrer, assim que eu terminar de morrer, quero correr tanto, mas tanto, que enquanto eu não encontrar o meu filho eu não paro…
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