Recentemente fui impactado com a notícia da morte de David Coimbra.
Grande cronista, participante por anos do “Sala de Redação” na Rádio Gaúcha (ao qual teci diversas discordâncias ao longo dos anos, importante ficar registrado) e mesmo assim, um cara que me instigou a começar a escrever.
Nesta autobiografia, David conta sobre como venceu a grande batalha do câncer na com todos os detalhes. Pena que o câncer voltou neste ano e a hora dele chegou, aos 60 anos recém completados. Um dos livros mais genuínos que li – iniciei no dia do seu falecimento.
David Coimbra se diferencia absurdamente dos jornalistas e conteudistas atuais que parecem não conseguir escrever uma mísera crônica como David escrevia. Assim como na partida de Paulo Sant’ana, me pergunto qual será o próximo bom jornalista e cronista nesse País.
Valeu, David!
- Intimamente, ninguém cogita que deixará de existir. O que sentimos, nossos desejos, nossa história, como é que tudo isso simplesmente desaparecerá?
- Não sou exatamente um otimista, e sim um realista apreciador da vida. Aceito as vicissitudes da existência como naturais, não fico procurando sentido em tudo.
- O que sempre me enfeitiçou nessa história, que, afinal, é parte da minha própria história, não foi o detalhe da desistência do meu pai. Não foi o abandono. Foi o momento em que meu pai decidiu entrar no bar. Uma decisão tão aparentemente irrelevante, tão fácil de ser tomada, dar dois passos da calçada em direção a uma porta aberta, e, ao mesmo tempo, uma decisão tão crucial.
- Fico pensando em como a vida é repleta dessas pequenas deliberações que podem alterar rumos e mover destinos. Fico pensando em todas as palavras espinhosas não ditas, nas vezes em que o sinal amarelo não foi cruzado, em que o gatilho não foi apertado, em que não liguei para ela, nas chances que deixei passar, e nas vezes em que fiz tudo isso, por bem ou por mal. Um passo, uma palavra, um gole, um pedido de perdão que não foi feito, e tudo muda. Mudou para meu pai. Mudou para mim. Neste fim de ano, o que desejo a todos é isso, que o passo seja certo, que a palavra seja macia, que o gole valha a pena. Que o perdão seja pedido. E concedido.
- Aos oito anos de idade, era mais cético do que ela.
- Os alunos a temiam, os professores a respeitavam, seu nome era pronunciado em voz baixa. Dona Eunice… Mas ali estava uma diretora que se importava com a escola que dirigia. São as donas Eunices, disciplinadoras, atentas, exigentes, que fazem as boas escolas. Numa escola, como em uma empresa ou em qualquer outra instituição, alguém tem de tomar as decisões, alguém tem de ter iniciativa, alguém tem de ter autoridade, sem, é claro, precisar usar de autoritarismo. Em suma, alguém tem de mandar.
- Voltei para casa levemente desorientado. Entrei e vi a sala cheia de pessoas que tinham vindo se solidarizar comigo. Mas eu não sentia muita vontade de conversar. Fui à geladeira e peguei uma cerveja. Alguém, acho que a Marcinha, questionou se não fazia mal beber horas antes de uma cirurgia. Pensei por alguns segundos. Olhei para a garrafinha na minha mão. Estava branquinha de tão gelada. Abri. Precisava daquela cervejinha, mas confesso que já tomei melhores na vida.
- Em minutos, me deram uma dose de morfina e apaguei. Schopenhauer dizia que a felicidade é a ausência de dor. Quando acordei, constatei essa verdade.
- Apenas quero sublinhar que, quando você está numa cama de hospital, tudo que é natural se torna ainda mais natural. Todas as vaidades ficam do lado de fora de um quarto de hospital.
- E agora? A Tânia tinha duas horas de programa de TV para preencher, e o homem só queria falar de seu livro de ficção… Foi aí que vi uma craque em ação. Ela conseguiu levar a entrevista até o fim, apenas roçando no assunto da guerrilha. Não é qualquer jornalista que é capaz de fazer isso.
- Um dia, logo depois do jornal, fomos tomar um cafezinho no jardim da emissora. Olhei para o céu que clareava e comentei: – Como as manhãs são bonitas… Ele acrescentou, depois de beber um gole de café: – Mas como eu gostaria de não vê-las…
- Jornalistas, em geral, são conservadores. Natural que sejam, tanto quanto os advogados o são, porque o jornalismo e o direito estão sempre atrás da sociedade. Têm de estar. O jornalismo e o direito refletem a sociedade na qual atuam. O jornalismo tenta compreendê-la e retratá-la. O direito tenta compreendê-la e regulá-la.
- Conto que fomos embora pela manhã. Os 600 chopes foram consumidos pelo núcleo duro da festa, formado pelos quatro da Brava mais uns seis agregados: cerca de 60 chopes para cada um. A saúde era outra, o mundo era outro, a cidade era outra, a vida era outra, em 1998.
- – Você deve ter desenvolvido esse câncer durante dez anos – calculou. Dez anos… Fiquei pensando no que eu estava fazendo em 2003. Certamente, deve ter sido algo muito errado.
- Sempre quis ser jornalista porque sempre quis viver de escrever. “Sempre”, no caso, não é força de expressão: antes mesmo de saber ler e escrever, queria viver de ler e escrever. Na verdade, não escrevo porque sou jornalista; sou jornalista para escrever.
- O Leonam, romântico que é, queria mudar o mundo, mas acabou mudando a mim e a muitos outros transformando-nos em repórteres, que também se tornaram românticos. Ele fez com que amássemos o que fazíamos. Não é pouco. Quem ama o que faz em geral é uma pessoa feliz. Quer dizer: o Leonam proporcionou vidas felizes a várias pessoas. Uma realização.
- Imagine um ambiente aberto, com duzentas pessoas convivendo diariamente. Essas duzentas pessoas são, todas, bem informadas e todas têm opinião. Um conversou com o presidente naquele mesmo dia, outro com um famoso cientista, outro com um jurista reconhecido, outro com um traficante perigoso, outro com uma dona de casa revoltada com a falta d’água em seu bairro. A vida mundana passa por uma redação.
- Mas confesso que minha preferência nunca foi ser gestor. O que gosto é de escrever. Assim, aproveitava todas as oportunidades que surgiam para fazer matérias. Às vezes, a direção de redação me chamava para substituir colunistas, o que era, mais do que um encargo, um prazer.
- Tento apenas fazer o melhor a cada dia e me preparar minimamente para o futuro, até por saber que projetos a longo prazo são inúteis – a vida tem o hábito de modificá-los.
- O que tu achas de manter a coluna e escrever dois dias por semana? Ou seja: perdi a Copa da França, mas ganhei a chance de fazer o que mais gostava: escrever.
- O fato é que o câncer desperta solidariedade mesmo, e não só em mineiros. As pessoas pensam que você vai morrer em seguida e passam a tratá-lo como um cadáver virtual, uma espécie de pré-morto. É muito bom. As pessoas ficam gentis e tolerantes. Não dão mais importância às coisas sem importância, enxergam mais o que você tem de bom do que o que tem de ruim, exaltam suas qualidades e esquecem seus defeitos. A vida como devia ser. É claro que, se você é insensível e comete o deslize de sobreviver, tudo volta ao normal. Mas, enquanto você está ameaçado de morte, as pessoas continuam boazinhas e solidárias.
- Bem, mas eu é que não ia questionar a ajuda de Deus, se Ele estivesse disposto a fazer algo por mim. Não estava em condições de recusar ajuda nenhuma. Que viessem rezas, promessas e cirurgias espirituais.
- O câncer é, na essência, uma célula mutante que, por algum motivo, começa a se reproduzir no organismo. Não é um vírus, não é uma bactéria, não é uma ameaça externa.
- Em geral, o sistema imunológico identifica que tem algo errado em alguma parte do corpo, envia a guarda pretoriana dos glóbulos brancos e executa o traidor. Mas, em certas ocasiões, a célula trânsfuga consegue se reproduzir, e aí é a tragédia. Células se reproduzem mais do que chineses, em proporção alarmante: uma vira duas, duas viram quatro, quatro viram oito, oito viram dezesseis, dezesseis viram trinta e duas e assim por diante, em altíssima velocidade – as células do câncer se reproduzem mais rapidamente do que as sãs. Como as células conseguem se multiplicar, a despeito da vigilância do sistema imunológico? Que mágica elas operam? Aí é que está. Os cientistas descobriram que o tumor “engana” o hospedeiro. Ele envia uma mensagem ao sistema imunológico avisando que está tudo bem, que o combate pode cessar, porque o inimigo está vencido. Só que o inimigo não está vencido, e continua crescendo em silêncio, como um alien. Quando o corpo sente os sintomas do ataque, em geral o tumor está forte demais, é preciso uma guerra sangrenta para derrotá-lo, se é que se consegue derrotá-lo.
- Servan-Schreiber – Nunca é uma só coisa. O câncer é a parte aparente do iceberg. Todos temos células cancerosas. Uma pessoa em cada quatro morrerá de câncer. Três em cada quatro não morrerão. Há fatores que permitem resistir. O que faz com que se tenha câncer? É quando existem mais fatores que favorecem as células cancerosas do que fatores que as detêm. Quando há um desequilíbrio entre os dois, o câncer se manifesta, é algo simples assim. E entre os fatores que favorecem o câncer estão, efetivamente, os pesticidas, a contaminação química do meio ambiente, as gorduras ômega-6, o açúcar, a carne vermelha, a falta de atividade física, o tabaco, o álcool, a parte psicológica. Uns se acumulam aos outros e favorecem sem parar o aumento das células cancerosas. E se não há, do outro lado, algo para resistir a isso, surge a doença.
- Servan-Schreiber – Durante a meditação, faço exercícios de respiração. O que mais ajuda é fazer três vezes por dia, durante três minutos a cada vez. Não é muito fácil achar tempo para isso, mas, ao mesmo tempo, não é muito. É o tempo gasto para se escovar os dentes, por exemplo. As pessoas que fazem isso têm suas vidas alteradas em duas ou três semanas.
- Servan-Schreiber – O açúcar alimenta diretamente as células cancerosas. O que se faz para detectar um câncer? Injeta-se glicose radioativa para ver onde ela se acumula no corpo. Chama-se um PET Scan. Por quê? Porque o câncer necessita de açúcar para crescer. Observa-se onde há acumulação de açúcar, e ali há um câncer.
- Mas, até ser definitivamente internado, quanto tempo me restava? O que deveria fazer, neste ínterim? Tinha de deixar minha mulher e meu filho em situação financeira segura. Fiz um rápido levantamento do que lhes deixaria. Tomei algumas decisões. Sentado na poltrona do ônibus, fui anotando as deliberações em um bloco de reportagem da Zero Hora (coisas práticas, coisas práticas!).
- Se morasse nessas distâncias, quanta saudade não sentiria?
- Lembrei-me então que, naquela época, em algum momento em que, por algum motivo, ela nos negligenciou, eu lhe disse: “Mais tarde, vamos nos separar para sempre, e tu vais sentir saudades”. Tantos anos depois, e minha profecia daquela noite se cumpriu. Nos separamos para sempre, e ela sente saudade. Para sempre. Nunca mais. As pessoas não acreditam, mas a vida é cheia de para sempre e de nunca mais. Se morasse aqui, quantos para sempre e nunca mais acrescentaria na minha vida? Quantos estou acrescentando nesse instante, mesmo sem morar aqui? Pessoas que vou perder e que vão me perder para sempre. Sentimentos que nunca mais voltarão. Pensar nisso me deu certa melancolia.
- Então me ocorreu: o Fernando de bengala, o Jorge com uma cicatriz lhe dividindo o peito que nem o Mississippi divide os Estados Unidos, o Amilton dentro de um colar cervical e eu também cá com minhas contingências, nós, que passávamos todo o dia de domingo no futebol e toda a noite de sábado na esbórnia, nós, agora, sentimos os efeitos do tempo. Mas, sentado à mesa com os parceiros da vida inteira, rindo e bebendo com eles, podia até sentir esses tais efeitos do tempo sem me sentir velho. Ao contrário: parecia que tinha de novo dezesseis anos de idade. Porque é assim que é. O homem que não se cansa de aprender e que mantém o interesse pelos seus afetos pode até ser antigo, mas não será velho. Nós quatro, ali, éramos quatro guris de cabelos grisalhos. Menos o Jorge. O Jorge jura que não, mas aposto que ele pinta o cabelo.
- Chorei baixinho, caminhando pela Harvard Street, ao entardecer amarelo pálido de Boston, e pensei que a idade não me defende de nada. Deveria haver uma casca neste meu peito, deveria haver uma capa protetora sobre mim, feita com a costura de todos esses anos. Mas, não. Não. A idade não me defende de nada.
- A gente só relaxa de verdade quando está em casa.
- – No Natal, vou dar o bico para o Papai Noel. Eu vou. Bem. Contratei um Papai Noel. Um ótimo Papai Noel. Eu mesmo quase acreditei que fosse o próprio, vindo direto do Polo Norte com seu trenó voador.
- Se você faz a coisa certa, terá paz. Não por causa do futuro: por causa do passado. Você olhará para o passado digno que construiu e irá suspirar de contentamento: está tudo certo.
- Aprendi que não são supostas glórias ou façanhas que vão me fazer feliz, e sim a soma de dias bons. Aprendi que a cada dia você constrói o seu passado e é esse passado sólido, harmonioso e, se possível, bonito que fará com que você se sinta feliz.
- Para o brasileiro, as coisas nunca ficam prontas; estão sempre acontecendo. O gerúndio está nas nossas mentes e, por consequência, nos nossos atos. “Estou chegando.” “Estou fazendo.” “Estou terminando.” Nada nos é
definitivo. Tudo está a caminho.
- Quantos dias mais me cabem? Não sei. Felizmente não sei. Mas, sejam quantos forem, o que espero deles é poder terminá-los olhando o sol que se põe, talvez sorrindo para alguém que amo, talvez fazendo um brinde à vida, ou apenas dizendo para mim mesmo: tem sido bom.