Este livro me foi recomendado por uma pessoa muito querida.
“Vamos Comprar um Poeta” é um livro importantíssimo para que façamos o máximo para não deixar de lado tudo o que é bom: a beleza; a cultura; os poemas; o que transcende; enfim, o que parece ser inútil num mundo utilitarista.
É um livro bem curtinho que mostra um local fictício onde todas as pessoas são data-driven (guiadas por números) e que existem poetas à venda, como animais de estimação, de famílias mais ricas.
Vale a reflexão e a leitura – e uma salva de palmas para o escritor português Afonso Cruz por nos presentear com algo tão profundo através de páginas tão simples e divertidas.
Seguem as melhores frases que grifei:
- Não estranhem se os virem parados muito tempo como se estivessem a fazer contas. Não estão, são incapazes da soma mais elementar. Essas paragens são precisamente os momentos em que começam a fazer poemas nas suas cabeças. É um processo fascinante.
- Sensação estranha. Enquanto caminhávamos, o poeta deu-me a mão. Quando via borboletas ficava a olhar para elas. Aconteceu duas vezes durante o trajeto.
- Repeti: Estamos em crise, ó poeta. E ele levantou-se porque entrou uma mosca. Foi atrás dela com o bloco e a caneta.
- Por acaso, o poeta acha que vegetais e frutas são o mais importante da pirâmide das necessidades? Evidentemente que não. É o quê, então? É a liberdade.
- Aos poucos fui começando a perceber o que o poeta dizia e já não era uma algaraviada, ouvia efetivamente palavras. Mas ainda passava muito tempo a tentar perceber aquelas mentiras. Metáforas. Metáforas? Sim, confirmou o poeta. Peço desculpa, mas um sapato não é uma luva apaixonada pelas mãos erradas. No mundo onde todos vivemos chama-se mentira e é muito feio, desconta-nos muitos pontos percentuais de moralidade.
- uma empresa alemã de produção de obsolescência universal, um produto industrial pronto a usar em qualquer outro produto comercial para garantir uma fiável efemeridade.
O que é que este poeta faz? Poemas, respondi eu. Para que servem? Para muitas coisas. Há poemas que servem para ver o mar.
- Ele falava com os livros, como se fossem amigos. Perguntava a Flaubert o que achava disto ou daquilo e abria o livro e obtinha respostas. E isso deleitava-me.
- Percebi que estava cada vez mais inutilitista e que pensava em coisas só pela sua beleza e não queria saber do seu valor monetário ou instrumental.
- No outro dia, na escola, perguntaram-me para que é que eu queria um poeta. Disse que gostava de poemas. Inutilista!, gritaram. Vocês não percebem que eu estou a acumular cultura? Para quê? Para montes de coisas. Montes? Isso é uma quantidade? Gasta um bocadinho connosco para demonstrar o valor da transação. Irritei-me e respondi, muito agressiva: A cultura não se gasta. Quanto mais se usa, mais se tem.
- Acordei muito maldisposta. Estava mesmo a sentir falta de uma metáfora ou, pelo menos, de uma comparação.
Sem metáforas, por exemplo, não é muito interessante falar. Eu posso dizer que uma janela é uma janela, mas isso já toda a gente sabe. Com a poesia posso dizer que uma janela é um bocado de mar ou uma cotovia a voar.
- De onde lhe viera aquela ideia, perguntaram-lhe, e ele respondeu: Da disciplina, das horas que passei a fazer contas, a calcular todos os cenários económicos possíveis, a focar-me na conjuntura global sem me esquecer dos problemas locais, a ler estudos feitos sobre esses mesmos assuntos. Mas não foi nada disso, foi apenas um verso que lhe veio à memória e que resolvia aquela crise.
- Sentamo-nos os dois e dizemos inutilidades. Algumas dessas inutilidades até são poemas.
- A poesia, diz-me ele, transfigura o universo e faz emergir a realidade descrita com a absoluta precisão da ambiguidade. Nunca li um bom verso que não voasse da página em que foi escrito. A poesia é um dedo espetado na realidade. Um poeta é como quem sai do banho e passa a mão pelo espelho embaciado para descobrir o seu próprio rosto.
- O poeta dizia que os versos libertam as coisas. Que quando percebemos a poesia de uma pedra, libertamos a pedra da sua “pedridade”. Salvamos tudo com a beleza. Salvamos tudo com poemas. Olhamos para um ramo morto e ele floresce. Estava apenas esquecido de quem era. Temos de libertar as coisas. Isso é um grande trabalho.
E antes de me deitar, repito a oração que aprendi com o poeta: Tenho milhas a percorrer antes de dormir.
- Se a arte e a literatura não tivessem importância, ninguém se preocuparia em incendiar a biblioteca de Alexandria (repetidas vezes), destruir os budas de Bamiyan ou as ruínas de Palmira.
- as coisas mais importantes da vida não são utilitárias
É na inutilidade que está o altruísmo e aquilo que o ser humano considera naturalmente mais nobre.
- «Claude Bernard, cujas pesquisas foram de grande importância para o desenvolvimento da medicina moderna, entrou um dia no salão onde iria discursar e reparou em algo peculiar: nos vários tabuleiros colocados numa mesa, contendo diferentes órgãos humanos, em alguns amontoava-se grande quantidade de moscas. Uma mente comum, sem qualquer capacidade poética, talvez reclamasse da falta de higiene na sala ou ordenasse ao pessoal da limpeza que fechasse as janelas. Mas Bernard não tinha uma mente comum: constatou que as moscas se amontoavam nos tabuleiros que tinham fígados—e pensou: Deve haver açúcar ali. Descobriu assim a função glicogénica do fígado—que se provou decisivo no tratamento diabético.
- E Claudel comentou: “Este processo mental é o mesmo do da poesia… A essência é a mesma. O que demonstra que a fonte do pensamento científico não é a razão, mas a verificação exata de uma associação originalmente fornecida pela imaginação.»
- «Certa vez, ao reprovarem Tales pela pobreza e pela inutilidade da sua filosofia, este previu, graças aos seus conhecimentos de astronomia, que haveria uma excelente colheita de azeitonas. Quando ainda era inverno e com o pouco dinheiro que possuía, investiu em todos os lagares de Mileto e de Quíos, arrendando-os quando não tinha competição. Ao chegar a altura da colheita, houve uma grande procura de lagares, e Tales subalugou-os pelo preço que quis, tendo um lucro tremendo e demonstrando ser fácil para um filósofo tornar-se rico, desde que o queira, mas salientando: não é isso que nos move.» (aristóteles, Política, I, 11, 1259a)
Muitas vezes se justifica a ficção como uma pretensa fuga da realidade (como disse Eliot, a humanidade não aguenta muita realidade)
- «Não é todos os dias que o mundo se organiza num poema», disse Wallace Stevens, mas todos os dias tentamos fazer com que alguns poemas se tornem mundo.
- A ficção e a cultura constroem tudo o que somos. Não nascemos com pelos e dentes afiados e garras. Criamos roupas e ferramentas, que são sempre produto da ficção, da cultura. A verdade salva-nos, por motivos evidentes, mas a ficção também.
- Os animais nascem com a verdade, com uma sólida realidade que lhes deixa um reduzido espectro de aprendizagem; nós nascemos com menos verdade, com menos realidade, mas com possibilidades, com as armas imponderáveis da ficção: criamos.
- Um garfo ou um alicate têm uma utilidade evidente e nesse sentido valerão sempre mais do que um verso, mas um garfo ou o alicate precisaram de ser inventados. E, para isso, foi preciso imaginá-los, criá-los. Quando olhamos à nossa volta e vemos cadeiras, mesas, camisas, escovas, colheres, lâmpadas, canetas, livros, o que estamos a ver não é algo que nasce connosco, é algo que nasceu da imaginação, da ficção, das ideias. Esse mundo que nos rodeia é produto da cultura.