Simples, curto e direto. Para complementar o fantástico, “O que eu falo quando falo de corrida”, Haruki Murakami nos presenteia sobre relatos ainda anteriores: sobre seu pai, sua infância e suas memórias.
Como sempre, Murakami vale a pena. As melhores frases que grifei foram:
- Sempre havia gatos na nossa casa , e gostávamos deles . Para mim , eram boas companhias . Como eu não tinha irmãos , livros e gatos eram os meus melhores amigos .
- Eu nunca passei por algo parecido . Fui criado — com certo afeto — como filho único , em uma família bastante comum . Então não compreendo , concreta e psicologicamente , que sequelas o fato de ser “ abandonado ” pelos pais deixa no coração de uma criança . Só me resta usar a mente para imaginar como deve ser . Será que esse tipo de memória não se torna uma cicatriz invisível que , por mais que mude de formato ou de profundidade , acompanha a pessoa até o fim da vida?
- Ao ler a biografia do diretor francês François Truffaut , descobri que ele também foi separado dos pais na infância ( praticamente rejeitado , como um estorvo ) e criado por outra família . Como resultado , Truffaut perseguiu , por toda a vida , o tema do abandono em seus filmes . Todas as pessoas devem ter , em maior ou menor escala , experiências pesadas que não conseguem esquecer , mas que também não conseguem contar de verdade a ninguém , experiências com as quais viverão e morrerão , sem jamais narrá – las totalmente .
- Assim são as relações interpessoais , e assim é a história . Essencialmente , um ato de transferência , um ritual . Cada um deve receber a sua parte , por mais desagradável que seja o conteúdo , por mais que se queira desviar o rosto . Do contrário , qual seria o sentido daquilo que chamamos de história ?
- Meu pai sempre gostou de estudar . Os estudos eram , para ele , uma razão de viver . Grande apreciador de literatura , mesmo depois de se tornar professor passava bastante tempo lendo sozinho . Nossa casa sempre foi abarrotada de livros , o que pode ter contribuído para que eu me tornasse um leitor voraz na adolescência .
- Quando gosto de um assunto , consigo me dedicar bastante , mas , quando não é o caso , não me importo . Sempre fui assim . Então , desde os primeiros anos da escola até o ensino médio , meus boletins nunca foram terríveis , mas também nunca foram motivo de admiração .
- Mas não correspondi a essa expectativa . Não conseguia , de jeito nenhum , me dedicar aos estudos . Achava a maioria das aulas um tédio , e o sistema de ensino , homogêneo e opressivo demais . Assim , meu pai vivia uma insatisfação crônica , e eu , uma dor crônica ( a que também , inconscientemente , misturava – se raiva ) . Quando lancei meu romance de estreia , aos trinta anos , ele pareceu feliz por mim , mas àquela altura já havíamos nos afastado demais .
- Acho que só resta a cada geração respirar o ar do seu tempo , sentir sobre os ombros a gravidade particular do seu momento . E amadurecer de acordo com as tendências impostas por esse ambiente . Para o bem ou para o mal , é esse o andar natural das coisas . Assim como os jovens de hoje estão sempre testando a paciência da geração dos seus pais .
- Meu pai e eu crescemos em épocas e ambientes diferentes , não pensávamos da mes – ma forma e não víamos o mundo da mesma maneira . Obviamente . Se em algum momento da vida eu tivesse me dedicado a reconstruir nossa relação , talvez as coisas tivessem sido outras . Mas em vez de dedicar tempo e esforço para buscar novas maneiras de conviver com meu pai , preferi concentrar minhas forças em meus próprios planos . Eu ainda era jovem , tinha muitos planos e objetivos claros . Tudo isso me importava mais do que lidar com questões familiares complexas . E eu também tinha , é claro , minha própria família para manter .
- O acúmulo infinito de pequenas lembranças como essa compõe a pessoa que sou .
- Não sei se um texto de cunho pessoal como esse interessa aos leitores , mas como sou alguém que só consegue pensar na prática , escrevendo ( sempre fui péssimo em pensar de forma abstrata e conceitual ) , precisei fazer isso . Retraçar as minhas memórias , olhar para o passado e transformar tudo em palavras sobre o papel , em um texto que pode ser lido em voz alta .
- Talvez o gatinho tivesse dado um jeito de descer durante a noite e ido embora ( para onde ? ) . Ou talvez não tivesse conseguido descer e tivesse permanecido ali , entre os galhos , exausto demais para miar , até definhar devagar e morrer . Sentado na varanda e olhando para o pinheiro , imaginei muitas vezes essa hipótese . O gatinho branco , morto e seco , ainda com as unhazinhas desesperadamente cravadas no galho . Essa é mais uma lembrança marcante da minha infância . Essa história deixou , na minha mente de menino , um ensinamento vívido : descer é muito mais difícil do que subir . Generalizando um pouco mais , seria o seguinte : os resultados engolem rapidamente as causas e as tornam impotentes . Em alguns casos , isso mata gatos . Em outros , pessoas .
- Passamos a vida olhando fatos que são fruto de mera causalidade como se fossem a única realidade possível . Em outras palavras , cada um de nós não passa de uma entre incontáveis gotas de chuva que caem sobre a vastidão da terra . Gotas únicas , é verdade , mas perfeitamente substituíveis . Ainda assim , cada uma dessas gotas de chuva tem as suas próprias ideias . Cada uma tem a sua história e também a obrigação de levar adiante essa história . Não podemos nos esquecer disso . Mesmo que cada gota logo seja absorvida , perca o contorno individual e desapareça como parte de um coletivo maior . Ou melhor : justamente porque vai desaparecer como parte de um coletivo maior .
- Se o destino do meu pai tivesse tomado qualquer outro rumo , por mais ínfima que fosse a diferença , com certeza eu não existiria . A história é isto : uma única realidade , inflexível , que prevaleceu entre incontáveis possibilidades . A história não está no passado . Ela existe no interior da nossa consciência , ou do nosso inconsciente , corre como sangue vivo e , querendo ou não , é transmitida para as próximas gerações .
- pessoalmente , eu não queria escrever isso como uma “ mensagem ” . Queria apenas apresentar , da forma mais direta possível , essa narrativa desconhecida de um canto da história